O Douro ontem e hoje: como a Barragem de Bagaúste mudou o curso de uma região
O Douro está na moda. Comprova-se com as dezenas de pessoas que todos os dias chegam nos barcos, portugueses e internacionais, que inundam as aldeias e cidades vinhateiras, apreciando todas as curvas dos socalcos e o rio Douro que os percorre. Este rio, navegável há 28 anos, desde o Porto até Barca D’Alva, transformou esta região numa oportunidade de negócio que deu um grande impulso ao turismo do Douro Vinhateiro. Porém, o rio que hoje é visitado e navegado por milhares de turistas, no passado era extremamente violento. Foi a partir da década de 60, com a construção das barragens, que se conseguiu regularizar o curso destas águas. A Barragem de Bagaúste é uma das paragens que atrai aqueles que percorrem a estrada N222, a melhor do planeta para conduzir e que liga o Peso da Régua ao Pinhão. A sua principal atração é o desnível que os barcos têm de vencer para navegar no rio Douro. Ramiro da Silva, de 68 anos, nascido em S. Joaninho, no concelho de Armamar, trabalhou na sua construção e explica todo o processo existente numa das maiores obras das décadas de 60 e 70 e que envolveu centenas de trabalhadores durienses.
A Via Navegável do Douro inaugurou-se em 1990. Ao longos dos anos, a cidade do Peso da Régua tem sido porto para inúmeros barcos que trazem até esta zona milhares de turistas.
Quando começou a trabalhar na barragem?
Ramiro da Silva Eu inscrevi-me na barragem no dia 29 de abril de 1970 e comecei a trabalhar no dia 30, até ir para a tropa. Assentei praça a 3 de janeiro de 1972 e fui para a guerra, em Moçambique. Quando cheguei em outubro de 1974, a construção da barragem já tinha acabado, mas a empresa responsável da obra ainda me indemnizou porque eu estive ao serviço do exército português, no Ultramar. Este período de tempo contou como se eu estivesse a trabalhar na barragem e por isso ainda recebi 40 contos.
Quais foram as suas tarefas na construção da barragem?
RS Eu fui para lá trabalhar como pai-pica, ou seja, trabalhava com uma pá ou com uma picareta, mas passado um mês, o capataz Zé Augusto chamou-me para ir trabalhar como servente de pedreiro.
Do local onde residia até à barragem, qual o meio de transporte que utilizava?
RS Eu ia a pé do S. Joaninho até à barragem, mas às vezes um capataz dos pedreiros, o senhor Zé Augusto, da Folgosa, dava-me boleia. Na barragem havia uma passarela, como nós chamávamos, uma ponte em cabos de aço e com um tabuado. Aquilo metia respeito porque com o vento balançava muito e nós tínhamos que a atravessar para poder ir trabalhar.
A Barragem de Bagaúste é diariamente visitada por dezenas de pessoas. A sua paragem torna-se obrigatória devido à curiosidade pelo desnível que os barcos têm de ultrapassar para continuarem a navegar no rio Douro
Como eram as refeições dos funcionários?
RS Havia dois tipos de refeição: cinco escudos a refeição de segunda e sete e quinhentos a refeição de primeira, a melhor porque tinha dieta e podíamos escolher entre carne e peixe. Nós à segunda feira comprávamos as refeições para a semana a seguir. No meu caso, quando as refeições de segunda eram boas, comprava porque sempre se poupava dois e quinhentos, que naquela altura era muito dinheiro; quando a refeição não era assim tão boa, comprava a refeição de primeira, porque podia escolher o que comer.
Como era a relação entre trabalhadores e chefes? Como caracteriza o ambiente vivido entre todos?
RS Nós éramos perto de 400, 500 trabalhadores e a barragem trabalhava 24 horas por dia, turnos de noite e turnos de dia. A obra só laborava de segunda a sábado e aos domingos e feriados não se trabalhava. Lembro-me que o recorde de betão ficou em 1200 metros cúbicos numa noite, no pilar central. Quando ao salário era igual para toda a gente, só diferenciava entre profissões. Quem ganhava menos era o que andava no pai-pica. Quando eu estive a trabalhar nessa área ganhava seis escudos e depois passei a ganhar sete e quinhentos, por hora.
À noite nós sabíamos que o engenheiro ia lá verificar o nosso trabalho, mas a gente praticamente não o via, ou seja, não havia aquela pressão porque ele sabia que o pessoal trabalhava sem ser preciso mandar trabalhar. Os engenheiros lidavam diretamente com os encarregados. O ambiente que vivíamos na barragem não tem nada a ver com o que hoje se passa nas empresas, isto porque naquela altura havia muito trabalho e não havia a guerra que há hoje. Atualmente os jovens não têm trabalho. Naquela altura se a gente ia para uma empresa, aparecia logo outra para nos oferecer trabalho. No Bagaúste, embora trabalhássemos muito, a empresa pagava muito bem.
Tem conhecimento de algum acidente de trabalho ocorrido durante a construção da barragem de Bagaúste?
RS A empresa era muito rigorosa quanto à segurança e éramos obrigados a usar sempre muito equipamento de segurança. Como deve compreender, em obras daquelas há sempre incidentes, mas nada de grave. Enquanto acidente de trabalho não houve nenhum, mas no dia 14 de agosto de 1971 morreram três senhores de Baião e Cinfães na barragem, isto porque nós costumávamos ir à pesca com a caixa dos pregos dos carpinteiros. Os peixes nadam contra a corrente e concentravam-se junto ao desvio do rio porque queriam subir. Então colocávamos as tais caixas presas cá em cima. Provavelmente, alguma se desviou e apanhou a força da água. Eles tentaram salvar-se uns aos outros, mas foram os três levados pela corrente.
Como é construir uma obra com água, pessoas e cimento?
RS A água nunca toca na construção porque o rio era desviado. Havia umas chapas de cimento com uma altura considerável que colocavam até chegar ao fundo do rio. Depois vinham camiões com terra e pedras que encostavam diretamente a essas chapas, para fazer logo parede e assim estancavam a água. Digamos que cortávamos o rio ao meio.
A Barragem de Bagaúste começou a ser construída em 1968 e foi inaugurada em 1973
Como enquadra a empresa, encarregue da construção da barragem, na época?
RS A Itelli – Empresa Técnica Lusitana, Lda, era já naquela altura uma empresa muito à frente daquilo a que estávamos habituados. Tinha um refeitório e medicina do trabalho, e por isso tinha um posto médico. Antes de irmos trabalhar faziam-nos uma inspeção para saber se tínhamos doenças, auscultavam-nos os pulmões, etc., porque na obra se nos queixássemos de alguma coisa íamos ao posto médico, onde estavam um médico e um enfermeiro diariamente. A empresa tinha uma organização que não estávamos, de todo, habituados porque não havia cá empresas que construíssem uma obra daquela dimensão. Naquela altura, as massas já eram temperadas, ou seja, os fiscais colocavam o termómetro na massa e viam se esta estava muito fria ou muito quente. Os salários eram certinhos e pagavam consoante as horas de trabalho.
Antes de a barragem ser construída, os técnicos andaram cá na zona a medir o espaço onde iria ser feita a obra. Fizeram os estudos ambientais, espetaram uns ferros a medir a altura da água, a velocidade a que a água passava e a capacidade do leito para saber qual o melhor sítio para construir a barragem. Tem outra coisa que estava muito à frente para a época: nós trabalhávamos o mês inteiro e recebíamos o salário, mas depois tínhamos um prémio – a prima. Se não faltássemos dia nenhum, davam-nos 200 escudos; se faltássemos um dia, davam-nos metade, 100 escudos; se faltássemos dois dias cortavam o prémio em 75% e se faltássemos três dias cortavam-nos o prémio todo.
Na sua opinião, qual o impacto da construção da barragem de Bagaúste na região?
RS Na altura, a barragem teve um impacto social, económico e paisagístico. O concelho de Armamar era rural e sobrevivia graças à agricultura, sendo um concelho muito pobre nas décadas de 60 e 70. Os jovens, como eu, mal saímos da escola tínhamos que ir trabalhar para a agricultura porque não havia nada que nós pudéssemos aprender. Na época acabávamos a quarta classe e não havia os estudos que há hoje. Quando surgiu a barragem, foi um bem para a nossa zona toda.
A nível social, com a construção da barragem, todos os trabalhadores passaram a descontar para a Segurança Social; a nível económico foi muito para a zona daqui de Armamar e também para a região porque muitos trabalhadores de Armamar, do Vacalar, S. Joaninho, Parada do Bispo, Valdigem, Covelinhas e da Folgosa foram trabalhar para a barragem. A nível paisagístico, com a construção da barragem tudo mudou por completo. O rio Temilobos, que desagua no Rio Douro, tinha uma ponte que agora está enterrada a 30 metros de profundidade; na Folgosa, o campo era no rio e deixou de existir; o portão principal da Quinta dos Frades era também junto ao rio e teve de ser retirado e colocado no local onde está hoje; a Quinta de Temilobos tem as suas cubas e armazém enterrados na água; na altura, quando íamos para o rio, tínhamos ali uma grande praia e até havia uma zona onde conseguíamos atravessá-lo a pé para Covelinhas. Com a barragem de Bagaúste, tudo isso ficou destruído.
Foz do Rio Temilobos que faz ligação entre S. Joaninho, aldeia natal de Ramiro da Silva, e a estrada N222 que o trabalhador percorria a pé até à Barragem de Bagaúste
Considera que o Douro perdeu a sua beleza?
RS Perdeu muito, principalmente a beleza natural que tinha, mas eu direi mais concretamente da foz do rio Temilobos para cima porque nós tínhamos uma praia e hoje não temos nada, aliás, só temos água. A barragem em termos económicos e sociais foi muito boa porque deu muito emprego. Mas como tudo na vida, tudo tem um preço. Se me perguntarem se foi bom, sim foi; se me perguntarem se teve impacto ambiente, sim teve. Para mim como para muita gente, monetariamente foi bom. Bagaúste foi também muito bom para a Régua porque passou a controlar as águas e deixaram de existir as cheias.
Nós não podemos ficar agarrados ao passado; a evolução dos tempos exige que nós acompanhemos a evolução das coisas. Qualquer coisa que se faça para o bem da sociedade, tem o seu preço. Se me perguntarem se gostava mais do douro antes ou depois, eu respondo que gostava mais antes, mas uma coisa é certa, nós também temos que compreender que as coisas têm que mudar. A barragem de Bagaúste para nós, embora tivesse algum impacto ambiental na região, trouxe mais benefícios do que prejuízos. Por isso não tenhamos dúvidas que para a região e para a própria cidade da Régua foi muito benéfica.
Podemos dizer então que a barragem facilitou a navegação dos barcos, porque pelo conhecimento comum o rio Douro era considerado um rio indomável. Acha que as barragens trouxeram benefícios quanto à sua navegabilidade?
RS Quando fizeram as barragens, já foi para que o Douro fosse navegável. Na construção da barragem, ao lado da eclusa onde hoje passam os barcos, havia lá a conduta dos peixes, como nós chamávamos. Por isso, quando alguém teve a ideia de construir a barragem de Bagaúste e todas as outras, já se fazia a eclusa para permitir a navegabilidade do rio.
Texto e imagens: Rute Monteiro