Orquestra CemNotas. Da galera de um camião para o palco do Boris Vian

A Orquestra CemNotas é um projeto musical que conta com quase uma década de história e reúne, atualmente, 135 músicos de várias faixas etárias. A Orquestra nasceu em 2013, em Moimenta da Beira, e pouco mais de seis anos depois pisou o palco do Espaço Cultural Boris Vian, em Paris.

Reportagem de Vânia Pinto

Ricardo Pereira tem 35 anos, é professor e fundador da orquestra, e admite que o projeto surgiu “um pouco por obra do acaso”, uma vez que a orquestra aparece na sua vida “de uma forma muito natural” comparando-a a uma história de amor: “os grandes amores não se procuram simplesmente aparecem” e “comigo e com a orquestra foi mais ou menos assim”.

Em 2019, seis anos depois do nascimento do projeto musical, a Orquestra CemNotas subiu ao emblemático palco do Espaço Cultural Boris Vian, localizado em Les Ullis, um dos mais conceituados teatros culturais de música ao vivo e artes performativas da região de Paris. “Pisar o palco de Paris pela segunda vez, pois já lá tínhamos estado em 2017, é uma sensação de realização pessoal e um sentimento de dever cumprido deste compromisso com os alunos, principalmente com aqueles que me acompanham ao longo de anos”, afirma o maestro da orquestra.

Concerto em Paris, em 2019

“O concerto em Paris acabou da melhor forma, com uma plateia de mais de 1000 pessoas de pé a aplaudir, e eu acho que esta frase diz tudo: se eu hoje morresse morria realizado, não há palavras para explicar o que se sente, é uma sensação de dever cumprido, ou seja, a sensação de um culminar de um trabalho de anos, em que tudo vale a pena porque nem sempre é tudo maravilhoso, há muito trabalho por trás, e quando digo muito trabalho refiro-me à luta e ao sacrifício”, conta Ricardo Pereira.

O concerto em Paris, que se realizou no dia 8 de junho de 2019, segundo o professor da orquestra, “constituiu um marco na história portuguesa e consequentemente para o projeto”, dado que “na história da música, a nível de projetos com crianças, a Orquestra CemNotas inaugurou o palco do Espaço Cultural de Boris Vian, em Paris.

Por outro lado, o professor recorda o primeiro concerto da orquestra: “o palco era uma galera de um camião completamente desnivelada que nós nem sabíamos como íamos colocar os teclados porque aquilo caia”, refere com algumas gargalhadas. “Eram um total de 12 alunos, um microfone e uma coluna, acabámos por tocar no chão, sem iluminação, a única luz que existia era a luz que vinha do café que estava a poucos metros e à nossa frente estavam umas vinte pessoas a assistir”, relata.

2019, um ano importante

O ano 2019 revelou-se muito importante para a história da orquestra, assim como para o próprio maestro, uma vez que antes do surgimento da Covid-19, o projeto tinha arrancado com convites para espetáculos e workshops de música e dança, pois a orquestra também dispõe da vertente da dança, os Dezpassitos, de promotoras como Palácio do Gelo em Viseu e Dolce Vita em Vila Real. Mais tarde, a orquestra esteve representada por duas alunas em dois concursos de televisão distintos, sendo que uma das alunas ficou em 2.º lugar. Posteriormente, o palco parisiense recebe a orquestra, e mais tarde surge um “convite de uma entrevista para a SIC relativamente a um projeto próprio da orquestra sobre instrumentos musicais recicláveis”.

O verão de 2019 foi marcado por diversos concertos em Portugal , e em dezembro a orquestra recebe o convite para a realização da gala da Liga Portuguesa contra o Cancro na Universidade Portucalense Infante D.Henrique, no Porto. A Orquestra CemNotas fechou o ano “com o habitual concerto de natal que é realizado todos os anos, exceto nos últimos dois anos devido à pandemia”, refere.

Atuação na gala da Liga Portuguesa contra o Cancro

Com o surgimento da Covid-19, Ricardo Pereira viu a sua orquestra reduzida a 135 alunos, quando em situações normais rondavam as duas centenas. Contudo, estes anos marcados pela pandemia provaram ao maestro do projeto “quem é que realmente estava de alma e coração na orquestra”. “Todos aqueles que me acompanhavam para Paris ou para programas de televisão desapareceram e só aqueles que realmente estavam no projeto porque gostavam de trabalhar com o seu líder, e que realmente tinham o sonho da música ficaram, e independentemente dos ventos e marés que passaram por nós ficaram agarrados ao homem do leme e aguentaram esta pancada”, diz Ricardo Pereira.

Uma orquestra para todas as idades

A Orquestra CemNotas é constituída por elementos de várias faixas etárias, contudo o fator idade não constituí um problema para o maestro: “eu nunca tive dificuldade em reunir as várias faixas etárias porque tento sempre incutir, pelo menos é assim que eu penso, que um bom músico ouve um pouco de tudo e faz um pouco de tudo a nível musical”. Segundo o professor, essa premissa resolve o problema das diversas faixas etárias uma vez que “os alunos sabem que quando sobem a um palco, independentemente de gostarem ou não daquela canção, que é normal, têm a responsabilidade e o compromisso de chegar a qualquer tipo de público ou de gosto musical que está na plateia”, refere.

Nos palcos da orquestra todos os instrumentos têm lugar, uma vez que o grande objetivo da orquestra é “conquistar todo o tipo de público”. E é neste seguimento que o maestro organiza os seus espetáculos, como indica o professor da orquestra: “grande parte dos membros da orquestra não pertencem ao núcleo de concertinas, mas no entanto, os alunos sempre respeitaram e entendem que em todos os concertos tem que haver dois ou três temas onde as concertinas sobem ao palco”.

Para o fundador da Orquestra CemNotas, o que diferencia este projeto dos demais é a genuinidade e a alma que todos os membros que representam a orquestra investem, pois, segundo Ricardo Pereira, “a orquestra podia fazer um concerto de um nível musical muito superior, era fácil, convidava cinco ou seis músicos profissionais, infiltrava-os no meio das crianças e tudo o resto era um pouco de show off”. Contudo, é a verdade que marca a diferença deste projeto: “tudo aquilo que sai das colunas, melhor ou pior, tem que ser feito por nós, por gentes da nossa terra, e têm que ser as nossas raízes a sair das colunas, não tem que ser melhor que os outros projetos, mas tem que ser genuíno, a nossa alma e aquilo que nos representa têm que estar presentes em todos os concertos”, sublinha Ricardo Pereira.

No palco da Orquestra CemNotas em espetáculos como a ExpoDemo, em Moimenta da Beira, e devido ao tamanho do palco estão presentes entre 100 a 120 alunos . No entanto, em palcos mais pequenos, como é o caso da FNAC, em Viseu, apenas vão os alunos mais formados e rondam os 30 músicos. Em concertos, igualmente importantes, mas por questões de distância, como é o caso de Paris, vão cerca de 50 músicos.

Concerto na Fnac Viseu

Música de alma e coração

O segredo do sucesso da Orquestra CemNotas é, segundo o líder do projeto, “tão simples e, ao mesmo tempo, tão difícil de perceber”. Para Ricardo Pereira, “é simples no sentido que é unicamente fazer música de alma e coração e difícil no sentido que nem sempre é fácil manter essa paixão nos momentos menos bons”. O maestro frisa, com alguma emoção, que quando foi possível regressar, após o primeiro confinamento, teve um choque de realidade uma vez que “ inicialmente eram 200 alunos e quando foi possível regressar às aulas de música estavam presentes apenas 19 alunos”. Esta situação fez o professor da orquestra questionar-se “se valia a pena continuar com o projeto” comparando o regresso à academia como “chegar a casa e encontrá-la completamente destruída pelas chamas”. Contudo, Ricardo Pereira percebeu, de imediato, “que era necessário voltar a arremangar as mangas e levantar a cabeça”.

Devido à evolução pandémica, Ricardo Pereira, sentiu a necessidade de voltar as suas aulas para o regime online e, para o seu espanto, 80% dos alunos aderiram a este método de ensino. O líder da orquestra reconhece as dificuldades e assume o esforço e dedicação dos seus alunos: “fizeram um trabalho que eu tiro-lhes o chapéu”. A vertente online não se revelou um processo fácil, visto que “um músico sente falta de barulho, de plateia, e o professor sente falta dos seus alunos”, conta Ricardo Pereira.

O líder do projeto cita uma frase de Pedro Abrunhosa que considera muito assertiva: “artista não é quem quer, artista é quem o público quer que seja”. Com esta afirmação o maestro pretende reforçar a importância do público na vida de um músico, uma vez que “é possível uma pessoa ter o maior talento do mundo, mas se o público não aderir não é artista, é só uma pessoa que canta ou toca bem” assim, afirma que “é o público que faz o artista”.

Para o fundador da academia, “o sucesso é a luta constante” defendendo que “a luta não se aplica somente à orquestra, mas sim em tudo na vida”. Para ele, “um sonho para se realizar só precisa que alguém acredite nele” e o “sucesso é isso, é acreditar que é possível“. Ricardo Pereira admite que “se há uma década alguém dissesse que este projeto era possível não acreditaria”.

O preconceito não ficou de fora do projeto, sendo que se fez sentir de duas formas distintas: “no sentido positivo, de tão jovem e o movimento de gente que arrasta” e no sentido negativo “da desvalorização”. No entanto, e com o passar dos anos, “o trabalho vai provando as coisas, e mesmo aqueles que atiram pedras simplesmente por atirar, foram-se calando ao longo do tempo”, afiança o fundador da orquestra, acrescentando que com o decorrer dos anos “esse sentimento foi-se diluindo dando lugar a um certo respeito, e silêncio”.

Voltar aos palcos

A Orquestra CemNotas é, para Eduardo Santos, vocalista e guitarrista do projeto, “ um espaço de aprendizagem que permitiu perder o medo do palco e evoluir enquanto músico”. Já Lara Pimenta, violinista na orquestra, refere que já está inserida no projeto há seis anos, e foi a vontade de “querer aprender a tocar um instrumento” que a impulsionou a fazer parte da Orquestra CemNotas. A mais recente vocalista do projeto, Joana Dias, ingressou na orquestra há cerca de um ano, e foi gosto pela música que a fez participar no projeto.

Orquestra em ensaios

O ano 2022 é, na perspectiva de Ricardo Pereira, “o ano que traz o maior desejo de voltar ao palco”. Para 2022, o maestro promete presentear o seu público com temas inovadores. “Voltar ao palco e fazer o que fizemos lá atrás não vale a pena, foi bom, foi o que tinha de ser , temos todo orgulho nisso, mas se é para voltar ao palco é para fazer melhor, trazer algo novo”, sublinha. O maestro desvenda ainda que “o próximo reportório de concerto conta desde o início ao fim com temas novos”, de artistas internacionais como Frank Sinatra e Elvis Presley, assim como novos temas nacionais e bandas sonoras de musicais infantis.

Para este ano a agenda já começa a ser preenchida com espétaculos em fevereiro, na Fnac, em Viseu. Na altura da Páscoa a orquestra estará presente em Vila Nova de Paiva e Moimenta da Beira. Para o verão, o maestro afirma que “existem datas com um ponto de interrogação”. Todas as datas estão sujeitas a cancelamentos ou adiamentos, devido à pandemia, contudo, Ricardo Pereira tem esperança “que o verão de 2022 seja mais calmo, uma vez que todos os músicos têm uma grande vontade de subir ao palco”, afirma.

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