ACERT: de um hospital em ruínas, a uma associação “onde as artes ganham morada”
Desde a sua formação, em 1976, a ACERT tem sido a cara de uma associação que aposta “num espaço de convivência onde as artes ganham morada”. Como forma de promover a formação e a produção artística do meio cívico e cultural de Tondela, esta associação promete uma programação regular de espetáculos “pescadores de felicidades e paixões”.
Reportagem de Patrícia Lourenço
A Associação Cultural e Recreativa de Tondela, mais familiarizada por ACERT, desde cedo que se assumiu “como portadora de um sentido de atuação pluridisciplinar”, afirma José Rui Martins, encenador e diretor da associação. Foi em 1976, dois anos após a Revolução 25 de Abril e a verdadeira “estimuladora” desta iniciativa, que surgiu o grupo amador Trigo Limpo.
Viviam-se momentos agitados após a queda da ditadura, e as ideias de liberdade e justiça tomaram conta de um grupo de jovens, em Tondela, que “desejosos” de participar ativamente na vida de um novo Portugal, “desenvolveram práticas culturais associadas ao desenvolvimento regional e à dinamização comunitária”, revela o diretor.
O grupo Trigo Limpo, desde cedo que demonstrou um trabalho amadurecido, e como prova disso, surgiu a primeira peça “O Povo Acordou”, em 1976, como uma iniciativa para ajudar o infantário de Tondela.
Com esta ação de ajudar “causas comunitárias e solidárias”, principalmente “no melhoramento das condições de vida e dos direitos da cidadania” depois da revolução, o Trigo Limpo criou a ACERT, em 1979, de modo a “ter um âmbito mais alargado”, que até hoje, José Rui Martins recorda como “um milagre da vontade e da paixão”.
O erguer de um hospital em ruínas pela força da cultura
Após a constituição do “Dia da Liberdade”, como refere José Rui Martins, a ideia de criar a associação prendia-se pela fidelidade à “matriz de liberdade para pensar e agir”, e também pela “solidariedade com causas sociais que dignifiquem o ser humano e que contribuam para a sua formação”.
Em 1984, devido a “bastante gente que não se revia só no teatro”, o grupo Trigo Limpo “passou a ser a secção de teatro da ACERT”, afirma Pompeu José, ator, encenador e animador cultural. Desta forma, o grupo deu continuidade à “afirmação comunitária” de uma associação que transformou um hospital em ruínas num espaço para “terapias culturais”, o Espaço Cultural ACERT.
Inicialmente, os recursos económicos eram escassos, mas ao colocarem “mãos-à-obra”, o grupo conseguiu os primeiros resultados da recuperação do edifício, com a ajuda da Fundação Calouste Gulbenkian e do Município de Tondela que, “após este apoio, cedeu materiais e serviços”.
José Rui Martins recorda que “outro dos momentos cruciais” para a transformação do Espaço Cultural, surgiu em 1989 com a formação “do setor profissional da ACERT”, como o Núcleo de Estudos e Recursos Culturais, uma equipa sem qualquer tipo de apoios, “que se propôs a desenvolver atividade teatral profissional”, de forma a arriscar em novos desafios.
Com o “trabalho voluntário dos associados” criaram-se novos espaços no antigo hospital, como a sala de espetáculo, as secretarias, a biblioteca e por fim, um bar “para ocorrerem outro tipo de apresentações”. Ainda assim, em 1994, a ACERT foi transferida para o antigo Ciclo Preparatório e “criou o Novo Ciclo ACERT em parceria com o Município de Tondela e a Secretaria de Estado da Cultura”, conta Pompeu José.
Intitulada “escola de saberes” por José Rui Martins, a ACERT foi uma verdadeira “ampliação de horizontes” numa época em que a liberdade permitiu uma “mudança no desenvolvimento de novas capacitações” e em que a cultura se fez sentir em força na sociedade.
A representatividade da comunidade
Com a missão de quererem chegar mais longe, Pompeu José assegura que os membros da ACERT confiam na “comunidade” que os “acolhe” para fazerem deles uma identidade cultural de “programação regular” para “o público geral, escolar e familiar”, assim como um “espaço de acolhimento de residências e formação”.
O diretor partilha da mesma opinião que Pompeu José e acrescenta: “há uma permanente ação cultural com os estabelecimentos de ensino” que permite aos alunos a visualização de espetáculos e a participação “em oficinas de expressão dramática, de poesia e de escrita criativa”, como é o caso do grupo de teatro da Escola Secundária “Na Xina Lua”, que “tem sido um grupo residente do Espaço ACERT”.
Criada no interior e numa Tondela “sem muros nem ameias”, a associação inseriu-se na “vida cultural do país” com uma “atuação artística transversal, ousada e eficaz na transformação dos hábitos culturais”, afirma José Rui Martins. No início, o distrito de Viseu apresentava-se como uma “região sem programações e criações artísticas regulares”, e com a formação da ACERT, esta assumiu um papel fundamental para a “meritória oferta e projeção cultural” que existe, atualmente, na proximidade.
Dessa transformação, resultam nos dias de hoje as “vantagens de trabalhar” no Interior, que tal como José Rui Martins defende, “não é uma fatalidade nem requer paternalismo”. É também no Centro, que a ACERT procura a rapidez e a facilidade em empresas ou pessoas que “quase de imediato, têm condições de corresponder” ao que a associação necessita para os espetáculos. Exemplo disto é a contratação de “um ferreiro”. Um artesão, que em vez de fazer o seu trabalho diário, focar-se-á no “descobrir de soluções para a engenhoca” que a entidade procura e “no dia de estreia, estará contente por tudo dar certo, fazendo anonimamente parte da equipa”, explica o diretor.
A inovação de práticas artísticas e a participação cultural do povo
Desde a sua formação, a ACERT distingue-se pela diversidade e dedicação em descobrir ligações na linguagem artística e na linguagem do espetáculo. Ao longo do tempo, a equipa fixou-se e as instalações do Novo Ciclo ACERT ainda se mantêm atualmente. Em virtude disto, definiu-se a “linha de atuação da ACERT” que consiste numa constante inovação de práticas artísticas, de modo a favorecer a “fruição e a participação cultural” de todos, garante José Rui Martins.
Como meio para atingir este objetivo, a associação rege-se pela “interligação entre a ousadia criativa”, quando o público é mais “exigente”, e por uma “programação sensata”, que influencia e transforma “realidades circundantes”. Com uma equipa “pluridisciplinar”, a ACERT apresenta-se como uma entidade “fortemente sensata”, pelo compromisso com a comunidade, pelo “serviço público” e pelo “ecletismo da ação” direcionada à população.
Desenvolver processos criativos num âmbito coletivo e criar “um equilíbrio entre tradição e modernidade”, é um “segredo que amadurece” a personalidade da ACERT, afirma o diretor. Nesta associação, há uma preocupação em “enquadrar práticas numa relação de proximidade com o público em geral”, que permite a “dignificação das populações” e a intimidade da zona Centro.
O espetáculo comunitário “Queima e Rebentamento do Judas”, que envolve a tradicional aliança de teatro, dança, música e fogo de artificio, é a “transformação de uma celebração ancestral num grandioso espetáculo de teatro” com a participação do público. Iniciada em 1996, e “diferente todos os anos”, esta encenação garante conteúdos contemporâneos e atuais, com “mais de 200 voluntários” na véspera do Domingo de Páscoa, esclarece Pompeu José.
Os eventos ilustres e o reconhecimento nacional e internacional
Para os eventos que realizam, José Rui Martins declara que, a equipa da ACERT procura “redescobrir” formas de adaptação às realidades atuais e especializadas, “de um espaço, dum tempo, duma região e da diversidade das funções da cultura”.
Na programação anual, o “Tom de Festa” – Festival de Música do Mundo ACERT e o “Finta” – Festival Internacional de Teatro da ACERT, têm representado “momentos marcantes” com “forte adesão”, que dão a conhecer ao público “grupos e artistas que passam a fazer parte do seu espólio artístico afetuoso”.
Segundo o diretor, a “distância dos grandes centros” e a “dificuldade económica na divulgação nos grandes meios de comunicação social” são as grandes limitações que a associação enfrenta. Na opinião de Pompeu José, as dificuldades “advêm da não estabilidade dos apoios, ao longo dos vários anos de atividade”, contudo, o ator assegura que “por mais anos que passem”, a ACERT continuará a “proporcionar ao público de Tondela e ao das localidades” em que circulam, “o que melhor se produz artisticamente”.
Assim sendo, é principalmente com os festivais de música e de teatro, “que mais espetadores extrarregionais são atraídos”. A “Queima e Rebentamento do Judas”, “representou uma experiência valorativa para os diversificados espetáculos de rua” que surgiram posteriormente, tal como “Brincando com o Fogo”, “Faldum” e “Tranviriato”.
Em 1998, com um boneco agigantado transformado na máquina de cena do desfile da EXPO’98, “Memoriar”, o Trigo Limpo Teatro ACERT concebeu uma “nova matriz” que, até 2019, “já originou a criação de projetos quase bienais”. Como relembra José Rui Martins, a criação desta máquina “foi um tributo à arte popular”, e o “Ciclista Caramulo” como é designado, “representa nacional e internacionalmente”, a cidade de Tondela.
Com o mesmo “processo de criação” da Queima do Judas, surgiu em 2013 o teatro “A Viagem do Elefante”, uma adaptação do romance de José Saramago, na qual já foram feitas “40 apresentações, em 38 localidades, para 52400 espetadores” que integrou “centenas de participantes das comunidades locais”, relata o ator.
Inicialmente distinguida como “uma casa” para “a realização de loucuras”, a ACERT representa, nos dias de hoje, o testemunho real de que “o futuro está no interior do país”. Segundo Pompeu José é possível “construir e manter projetos culturais de nível nacional e internacional” a partir de “uma pequena cidade desse mesmo interior”, cidade essa, que implementa uma associação com vontade de fazer a diferença há quatro décadas de história.