“Na mudança nada fica. Tudo muda, tudo avança”
Seis reclusos do Estabelecimento Prisional de Viseu foram parceiros de palco de Inês Lamela, pianista, e experienciaram, no dia 30 de outubro no ano passado (2018), um momento fora do normal no Teatro Viriato
A manhã foi passada a ensaiar. À tarde, os seis detidos dedicaram-se aos apontamentos finais para a apresentação que fariam por volta das 17h30 a familiares, funcionários do estabelecimento prisional e participantes da masterclass que tinha decorrido na semana anterior, também no Teatro Viriato. Este pequeno espetáculo onde em palco estiveram “professora” e “alunos” a tocar e a cantar foi o culminar de uma experiência única, tanto para os participantes como para a pianista.
“Em palco, a atitude é meio caminho andado para convencer toda a gente”, dizia a professora aos reclusos, num dos momentos em que as suas vozes não acompanharam o ritmo da música.
Inês Lamela, professora e pianista, desenvolveu o workshop de piano em colaboração com o Estabelecimento Prisional de Viseu a convite do Teatro Viriato. Uma experiência que surgiu no seguimento da sua tese de doutoramento baseada no trabalho que desenvolveu, no espaço de tempo de um ano letivo, com quatro reclusas do Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo.
“Sou pianista de formação de conservatório mais clássico, tenho o percurso o mais tradicional que se possa imaginar e, quando entrei pela primeira vez numa prisão e participei num projeto de música, percebi que estes anos todos de investimento numa carreira artística faziam muito mais sentido quando eram postos em prática a trabalhar com as pessoas que estão numa situação muito complicada”, contou. Apesar de se dedicar a cem por cento a dar aulas, a professora de piano diz que esta é uma vida paralela que gosta de ter.
Segundo Inês Lamela, esta é uma experiência transformadora, tanto para si como para os reclusos. Os objetivos passam por fazer com que sintam que foi um dia diferente e, quem sabe, descubram algo que não imaginavam ser capazes de fazer. “Mas, não estou à espera de ter alguém que, de repente, tem uma epifania e diz: eu quero fazer música até ao resto da minha vida”, afirmou em tom de brincadeira.
A professora de piano tem como intuito ajudar os reclusos a “descobrir novas capacidades” e, acima de tudo, que entendam “que se consegue trabalhar em equipa”, ainda que muitas vezes estejam centrados em si mesmos.
“Ter uma pessoa que tem um passado complicado a dizer-me que está absolutamente orgulhosa de si mesma e não tem vergonha nenhuma de dizer que esteve presa e que fez o projeto porque conseguiu fazer algo que nunca acharia ser possível, para mim é um sinal muito óbvio de transformação. E também me transforma a mim, posso acrescentar”, assinala.
Um dia diferente
Os ensaios finais decorreram já no palco do Teatro Viriato. Os seis reclusos tocaram em simultâneo com a professora. Três de pé e três sentados, iam alternando vez para tocarem enquanto Inês fazia a harmonia nesta marterclass que envolvia aulas de piano e de canto.
“Têm que fazer com que o público sinta o que leem”, dizia-lhes a pianista no início do primeiro exercício.
“É urgente o amor”, de Eugénio Andrade, foi o poema que lhes foi proposto recitarem. À vez, cada um lia a parte que tinha escolhido, enquanto a professora acompanhava ao piano. Após a leitura, sentava-se e tocava um pouco com ela. E assim sucessivamente.
O segundo exercício incidia sobre o poema “O que muda na mudança”, de Carlos Drummond de Andrade. Após alguns atropelamentos musicais e brincadeiras, em conjunto, reformularam o poema, acrescentando versos como “Na mudança nada fica. Tudo muda, tudo avança”. Um momento de envolvência de todos os colegas com a professora, em que ela pedia por energia.
Experiências musicais
À medida que a lição de música progredia, a voz de Sérgio Moura destacava- se entre as dos colegas. O seu timbre forte indiciava que poderia já ter alguma experiência musical. Envergonhado, lá confessou que era um apaixonado por karaoke.
“Fui vocalista de algumas bandas pequenas na minha terra e também toquei alguns instrumentos de sopro numa banda filarmónica”, contou, acrescentando que, antes de ir para o Estabelecimento Prisional de Viseu, esteve na cadeia de Izeda onde também foi vocalista de uma banda feita com colegas.
Sérgio lamenta que não há um projeto musical na cadeia de Viseu. “Era bom que houvesse porque a música traz outro estado de espírito” e permite-lhe esquecer tudo.
Também para José Loureiro, outro dos reclusos, a música fazia parte do seu quotidiano antes de ir para a prisão. Foi proprietário de bares e discotecas. Na sua opinião, era positivo se existissem mais projetos deste género porque “dentro da prisão toda a gente sente falta de um entretenimento como este”.
Depois de um dia intenso de trabalho, Inês Lamela disse estar convencida de que “não é preciso um doutoramento” para se chegar à conclusão de que a música é, de facto, transformadora. “A música pode ser altamente transformadora só pelo facto de estar sentado numa cadeira a ouvi-la. Quando se faz música, essa transformação pode ser ainda maior”, rematou a pianista, que ao longo de um dia tentou fazer sobressair os dotes musicais dos reclusos de Viseu.
Para todos os participantes, este workshop foi um misto de emoções. Descobriram-se passados e paixões em comum e houve a oportunidade de viver uma experiência musical. Para quase todos, houve a emoção de estar, pela primeira vez, em cima de um palco.
Atividades prisionais em Portugal
No Estabelecimento Prisional de Viseu são poucas as atividades, denominadas como ‘ocupação laboral’, para os reclusos. Tapetes de Arraiolos; Manutenção e Limpeza; Projetos Agrícolas no EPE Viseu (Campo); e, por último, obras de construção civil de recuperação e alteração de espaços são algumas das iniciativas que os reclusos desenvolvem neste espaço. Mas, há muitas outras ações que diversas instituições da cidade promovem junto desta população. Teatro, música e atividades desportivas são exemplos. Todos os anos, há concertos neste estabelecimento em resultado de uma parceria com os responsáveis pela organização do Festival de Jazz.
O Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo – Feminino, em Matosinhos, onde a pianista Inês Lamela iniciou o seu projeto musical, é o que mais se distingue em Portugal pelo seu desenvolvimento. Conforme uma notícia da Agência Lusa, o primeiro-ministro António Costa disse, no passado mês de janeiro, que “o Governo ‘deve e tem de conseguir’ replicar no país o exemplo da cadeia de Santa Cruz do Bispo, onde as reclusas têm uma ocupação laboral fruto de uma parceria com a Misericórdia”. Segundo a notícia da agência nacional, “o objetivo é dotar ou desenvolver competência profissionais, pessoais e sociais para que a reclusa, quando em liberdade, possua ferramentas suficientes que permitam a sua reintegração no mundo ativo”.
Este estabelecimento tem protocolos de cooperação com a Santa Casa da Misericórdia do Porto e a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP).
Já de acordo com O Jornal Económico, há mais de doze mil presos distribuídos pelas cadeias a nível nacional, mas cerca de oito mil não têm trabalho. “Agricultura, produção animal e floresta são algumas das ofertas de trabalho mais disponibilizadas”, as atividades laborais que mais subiram nos anos de 2016 e 2017, afirma a publicação.
Quase 50% dos presidiários, a nível nacional, encontram-se, também, a realizar “atividades administrativas ou na limpeza e manutenção dos edifícios e jardins das cadeias”, acrescenta.
A Cruz Vermelha Portuguesa é outra instituição que tem projetos de empreendedorismo social em parceria com a DGRSP, como o ‘Estado Puro’. Este projeto de empreendedorismo social visa apoiar a pessoa reclusa na sua inserção na sociedade, de forma a diminuir a sua reincidência.
A promoção de atividades que consigam abranger várias profissões podem ser um fator essencial no que toca à reinserção social dos reclusos, após o cumprimento da pena.
Texto: Romana Martins
Imagens: DR