Comer uma sandes com as duas mãos para juntar as migalhas e poder comê-las a seguir
Se em 2020 o desporto mais praticado pela população mundial foi a corrida aos supermercados para esgotar os stocks de papel higiénico e álcool-gel, em 2023, as motivações intrínsecas das pessoas sofreram alterações
Crónica de Ana Raquel Pinto
Se em 2020 a Covid-19 monopolizou os temas de conversa da sociedade, e se achávamos que o vírus iria durar para sempre, deixem-me que vos diga que em 2023 a realidade é completamente diferente. Mas acho que todos já se aperceberam disso. Felizmente, as nossas projeções negativas em relação ao futuro da humanidade não se concretizaram. No entanto, tínhamos a obrigação de ultrapassar um vírus pandémico já que adquirimos experiência a lutar contra a estupidez humana, que, por sinal, também é global.
É graças a ela que, em 2023, o mundo ainda está a funcionar a “meio gás”. Inventámos vacinas para atenuar os danos de um vírus mortal, mas estamos em tempo de rivalidades intercontinentais. No ano passado a Rússia declarou guerra à Ucrânia e até então as imagens de destruição e miséria são mais pujantes que a misoginia de Donald Trump. O conflito está a afetar a vida de todos, nomeadamente por causa da inflação…
Se em 2020 o desporto mais praticado pela população mundial foi a corrida aos supermercados para esgotar os stocks de papel higiénico e álcool-gel, em 2023, as motivações intrínsecas das pessoas sofreram alterações…A sociedade continua a correr, todavia, agora na direção oposta, isto porque ninguém quer despender de dois terços do seu orçamento para comprar quatro pacotes de massa e cinco latas de atum que totalizam o valor de um ordenado mínimo. É caso para dizer “que massada!”. Atrevo-me a dizer que é uma questão de tempo até a bolha rebentar e as pessoas passarem a ir às compras com a mesma postura com que eu vou às lojas de roupa num domingo à tarde: só vamos ver!
A inflação está a fazer-se sentir por todo o lado! Os mendigos têm de pedir duas moedinhas em vez de uma, os luxos das pessoas cingem-se em ter dinheiro extra para comprar mais comida e em casos extremos, usa-se a água do duche para fazer sopa…
Há uns anos, tive o prazer de fazer voluntariado. O que mais me marcou até hoje foi ver pessoas a comer uma sandes com as duas mãos para juntar as migalhas e poder comê-las a seguir. Os acessos de bondade comunitária são o que ainda permitem viver a estas pessoas. Atualmente, pergunto-me, como é que estarão esses sujeitos. Será que já se aperceberam da situação do mundo? Ou será que nem notaram diferenças tendo em conta o estilo de vida que têm. Pergunto-me se isso é bom ou mau. O que será pior? Ter a dor de ver o mundo a degradar-se ou estar tão anestesiado com a enfermidade da vida que nem nos apercebemos que o mundo está a colapsar?