Trabalhar por conta própria, uma escolha para aventureiros
Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2020, eram cerca de 800 mil o número de trabalhadores por conta própria, sendo que 72% destes não emprega terceiros. Num inquérito realizado em 2018 pelo INE, o que se concluiu é que a maioria destes trabalhadores que não empregam outros está bem assim e que não está nos seus planos vir a ter empregados. Alguns destes trabalhadores encontram-se nas pequenas aldeias, um pouco por todo o país, como é o caso de Fernando Paiva e Horácio Silva. Naturais do concelho de São Pedro do Sul, ambos mantêm as suas pequenas empresas por conta própria.
Reportagem de Maria João Paiva
Fernando Paiva é carpinteiro e trabalha por conta própria há mais de 21 anos e, durante uma parte deste tempo, chegou a ter um empregado. Acabou por o dispensar quando percebeu que o trabalho que fazia, mesmo que por vezes seja muito para uma só pessoa, não compensava assim tanto para o ordenado mensal do seu trabalhador. Admitiu ainda que “por mais duro que seja, trabalhar sozinho é algo que me deixa muito satisfeito”.
Em todos estes anos a trabalhar sozinho, reconhece que a idade já está a complicar a sua atividade exatamente por este motivo, mas por enquanto faz questão de se manter assim. Em entrevista, Fernando Paiva admitiu que apesar da experiência que já traz consigo, ainda há alturas em que se torna mais complexo gerir o que vai ganhando. Segundo o carpinteiro, “não é qualquer pessoa que consegue trabalhar sem a segurança do ordenado no final do mês, é preciso ser-se aventureiro”.
A verdade é que um trabalhador por conta própria não recebe se não trabalhar e se há coisa que preocupa Fernando Paiva, é a questão da reforma. Na opinião deste trabalhador, o Estado português não está preparado para quando a maioria da população, que neste momento se encontra ativa, se reformar e ele, sendo independente e não trabalhador da função pública, teme não conseguir manter a qualidade de vida que idealiza na sua reforma: “não se trata de ter uma vida de luxo, mas sim uma vida confortável em que o dinheiro dê para eu comprar tudo o que precise e não só as despesas da farmácia”.
Apesar da carpintaria ser o seu foco, Fernando Paiva admite aceitar serviços de mudanças uma vez por outra, para conseguir um dinheiro extra. Questionado sobre o facto de não conseguir chegar ao fim de todos os meses com dinheiro, Fernando admitiu que é aí que está a parte mais difícil: “eu tenho quatro filhos e embora duas já sejam independentes, foi muito complicado em alturas como as de comprar os manuais escolares. O facto de eu trabalhar por conta própria fazia com que aos olhos do sistema os meus filhos não tivessem nenhum apoio nem subsídio, o que significava pagar 600 ou 700 euros pelos livros de todos. Se os meses anteriores me tivessem corrido mal, não havia nenhuma entidade a assegurar-me nada”.
Para além deste aspeto, o carpinteiro de longa data admite que a grande dificuldade que enfrenta é mesmo a falta de apoios que sente por parte do Estado e do Governo, não só quando se reformar, mas também enquanto se encontra em atividade. “Não havendo uma regularidade de mês para mês, é muito fácil imaginar-me a ficar sem trabalho. Nunca aconteceu durante todos estes anos, mas é uma visão que facilmente se imagina quando o pouco lucro que se vai fazendo tem que ser descontado e, num cenário sem rendimentos, o que o Estado vai continuar a fazer é a exigir e não dar os apoios necessários para eu continuar a exercer”, desabafa Fernando Paiva. O profissional admite ainda que teme ter algum problema de saúde, que o impeça de trabalhar, pois caso isso aconteça, sabe que dificilmente alguma entidade o ajuda: “só o ordenado da minha esposa é que vai apoiar-me”.
“Pessoas mais sérias e de palavra”
Horácio Silva, construtor há mais de 25 anos, admite que uma das tarefas mais complicadas é a compra do material. Sendo construtor numa pequena aldeia, embora faça serviços fora dela, nem sempre é fácil gerir os poucos ganhos para a compra de material no início de cada obra: “quando nós conhecemos as pessoas e sabemos as dificuldades que elas passam, é complicado pedir o chamado adiantamento e isso dificulta a minha vida. Tenho que comprometer-me com os fornecedores e cá me vou arranjando.”
Para este construtor as preocupações passam muito por conseguir assegurar o ordenado do seu único empregado, Carlos Almeida. Em entrevista, o funcionário admitiu que a relação que mantém com o patrão se compara a uma relação entre colegas de trabalho e que sabe quão complicados são alguns meses para o patrão lhe dar o seu salário: “nós temos esta relação próxima, já de há muitos anos e se um dia o Horácio chegar ao pé de mim e me disser que vou ter que esperar uns dias porque ainda não consegue pagar, eu vou compreender, porque neste aspeto de finanças, ele está sozinho para manter a pequena empresa em andamento”.
“Até podia ir trabalhar para uma empresa maior, com mais segurança, mas estes meios mais pequenos acabam por nos oferecer convivências com pessoas mais sérias e de palavra, algo muito raro hoje em dia”, diz Carlos Almeida. Para o empregado de Horácio Silva, mais importante do que o dinheiro, são as relações interpessoais que uma empresa mais pequena acaba por oferecer.
São de áreas diferentes, mas as queixas acabam por ser as mesmas, pois tanto Fernando Paiva como Horácio Silva assumem que o Governo devia ter em conta a situação sensível dos trabalhadores por conta própria. O carpinteiro admite que os laços de longos anos de trabalho permitem ter algum conforto quando se trata de pagar aos fornecedores: “não há quem nos perceba melhor que os fornecedores. Eles vêm à minha oficina, veem o que eu faço e sabem o complicado é em certas alturas. Se eles não nos forem ajudando com o material, e quando digo ajudar não é oferecer, mas sim deixar-nos ir pagando, eu admito, não ia conseguir manter-me a trabalhar por conta própria”. Horácio acabou por desabafar este cenário, acrescentando que “apesar dos tempos mais individualistas em que vivemos, aqui é que conseguimos perceber a entreajuda que ainda existe no meio”.
Com a pandemia, ambos admitem que não sentiram as consequências que muitos trabalhadores sentiram porque se conseguiram ir arranjando trabalho. Horácio Silva revelou que “o que um trabalhador deste tipo acaba por sentir são os efeitos da crise. Não sentimos logo uma quebra repentina nos confinamentos e por aí fora, começamos a sentir isso é quando os nossos clientes vão deixando de poder gastar dinheiro com os nossos serviços, como em qualquer época de crise”.
Gerir o tempo
Para Fernando Paiva, um dos melhores aspetos de trabalhar sozinho e por conta própria é a questão de poder gerir o seu tempo de trabalho da melhor maneira que entender. Este aspeto acaba por ser mesmo uma questão de motivação e, por consequência, um bom produto final. Ainda assim o que acaba por desmotivar é a carga fiscal que um trabalhador por conta própria sofre. “Para a Segurança Social quanto mais eu faturo, mais tenho de pagar. Num mês posso pagar 50 euros e no mês a seguir já pago 300 euros. É complicado”, sustenta o carpinteiro.
Quando questionados sobre as principais diferenças que sentem dos dias de hoje, comparativamente com os primeiros anos de profissão, a resposta não diferiu muito. Ambos afirmam que a idade é o fator que mais pesa. Fernando Paiva admite mesmo que há dias em que a vontade e energia para trabalhar quase não existe, “mas tem de ser”. Por sua vez, Horácio Silva acaba por assumir que mesmo quando sente esta falta de vontade, o facto de ter um empregado acaba por o obrigar a sair para trabalhar.
Para já, Fernando Paiva não pensa contratar ninguém para o acompanhar no seu dia a dia, mas não nega uma possível contratação caso precise de manter a empresa com a mesma atividade e caso se sinta cansado.
Ambos os trabalhadores independentes afirmam que, por mais que não seja uma decisão de vida economicamente estável, foi o caminho que escolheram e a experiência de vida profissional que esta escolha lhes deu é de um valor inexplicável. “Pode ser precisa muita coragem, mas é sem dúvida uma aventura diária muito enriquecedora”, remata Fernando Paiva.