Mobilidade reduzida: a vida com obstáculos

Quando saímos de casa pela manhã, descemos a escada, pisamos o passeio, lançamo-nos nas passadeiras, entramos no café, isto sem antes termos passado pelo multibanco e seguirmos para o nosso trabalho ou escola, muitas vezes utilizando os transportes públicos e nem por uma vez nos lembramos que estes gestos tão rotineiros são proibitivos para alguns.

Reportagem de Inês Lamego

Fomos ao encontro de três pessoas que lidam com esta realidade todos os dias e procurámos perceber como lidam com estes obstáculos. Sabendo que quando se fala de mobilidade reduzida, não podemos colocar todos no mesmo plano, pois o nível das lesões e forma como foram adquiridas, colocam barreiras diferentes a todos os utilizadores.

Filomena Franco tem 45 anos, é ex-atleta paralímpica do Remo e ficou paraplégica aos dezoito anos, num acidente de trabalho envolvendo um elevador. Em 1994 quando a sua vida mudou radicalmente pelo acidente que a colocou numa cadeira de rodas, a realidade em Portugal quer em termos de acessibilidades físicas, quer em termos de acessibilidades mentais, era muito diferente da que se vive hoje em dia. “Na época em que tive o acidente, morava num quarto andar sem elevador e tinham de me carregar às cavalitas para entrar e sair de casa” retrata Filomena Franco. Alude assim, à falta de preparação dos edifícios na altura e também da forma com a sociedade tratava os portadores de deficiência motora.

Há vinte e sete anos, não existiam as acessibilidades que hoje existem, as portas eram estreitas e tiveram de ser alargadas para que Filomena pudesse usufruir da sua casa. Até tarefas básicas como ir à casa de banho eram bastante perigosas. “Eu para ir à casa de banho tinha de me arrastar em cima de um banco, um dia cai e o meu pai apanhou um susto tão grande, que resolveu partir as portas todas onde eu passava, para as conseguir alargar” relembra Filomena Franco.

Quatro anos antes do infortúnio que colheu Filomena, em 1990, também Maria Manuela Cardoso, enfermeira, hoje com 56 anos, viu-se limitada numa carreira de rodas após um acidente de viação. Eram tempos difíceis para pessoas em cadeira de rodas, as ajudas eram escassas e era no seio familiar que as limitações tinham de ser ultrapassadas. “Há 31 anos atrás as acessibilidades eram quase nulas, eu morava no 1º andar de uma moradia sem elevador e tivemos de fazer uma rampa nas traseiras diretamente para a minha habitação”, conta a enfermeira.

Já Carlos Nogueira de 56 anos, embaixador da Associação Salvador e ele próprio utilizador de cadeira de rodas, convive com esta realidade desde sempre. Diagnosticado com uma doença congénita que se verificou à nascença, cedo se deparou com uma realidade bastante dura. A convivência na adolescência com jovens da sua idade era reduzida, e uma ida à praia que era tão apreciada por ele, era muito complicada. “Quando era adolescente, frequentar uma praia era uma dor de cabeça. Tínhamos de procurar a praia menos difícil de aceder, pois nenhuma tinha acessibilidades para pessoas com mobilidade reduzida. Tínhamos sempre de nos fazer acompanhar de duas ou três pessoas, para literalmente nos carregarem às costas”, revela Carlos Nogueira.

A ideia que fica de um passado recente é que os obstáculos físicos eram muitos, de difícil contorno, mas o maior problema estava na cabeça das pessoas. As pessoas com deficiência motora fechavam-se em casa. “Antigamente não se via pessoas de cadeira de rodas na rua, eu própria nunca tinha contactado com ninguém nesta situação”, constata Maria Cardoso. A sociedade olhava com distanciamento para os problemas dos deficientes motores e tinha deles uma visão depreciativa, aqui referida na visão de Filomena Franco: “Olhavam para nós com pena, tratavam-nos como coitadinhos. Nunca gostei e nunca me senti uma coitadinha.”

Com o tempo e com uma forte influência da nossa presença na Comunidade Europeia, as coisas foram mudando. Houve um despertar para as questões da mobilidade e dos obstáculos arquitetónicos, presentes no nosso dia a dia. O esforço foi feito quase sempre pelos utilizadores de cadeiras de rodas, que iam alertando e consciencializando a sociedade para os seus problemas. É neste panorama que a Associação Salvador, ganha uma importância extrema. Carlos Nogueira da Associação Salvador, diz que “a associação trouxe uma forma nova de olhar para as pessoas com deficiência, onde a palavra inclusão ganhou destaque nos projetos desenvolvidos”.

Associação Salvador

A integração das pessoas com mobilidade reduzida é um dos objetivos da associação. A qualidade de vida destas pessoas está diretamente ligada a duas vertentes, a física e a mental. A criação de eventos feitos pela Associação Salvador, que junta os utilizadores de cadeiras de rodas no mesmo espaço, permitindo uma partilha de vivências, faz muito pela autoestima deste grupo de pessoas. Projetos como o AQV (ação qualidade de vida), combate o isolamento criando condições na vida das pessoas com a eliminação dos obstáculos físicos que limitam o quotidiano dos deficientes motores.

O desporto, pela sua importância na atividade física, é para os portadores de mobilidade reduzida fundamental para o manter do bem-estar físico e mental. Foi no desporto que Filomena Franco procurou ganhar forças para se afirmar na sua vida em sociedade. Sempre demonstrou uma garra que lhe permitiu participar em duas edições dos Jogos Paraolímpicos, em Pequim e em Londres, e foi essa maneira de ver a vida que lhe mostrou que não deve esperar pela ajuda dos outros, mas antes lutar pelos seus direitos, com refere a própria: “somos nós que temos de alertar para os nossos problemas e hoje em dia existe por parte da sociedade um empenho forte para ajudar”.

Filomena Franco

Existem, no entanto, nos dias que correm, problemas que se teimam em manter e para os quais não existe um fim à vista.  Passeios irregulares e com altura elevada, multibancos colocados num lugar alto e muitas vezes limitados com degraus no acesso, transportes públicos sem acesso a deficientes motores, serviços públicos em edifícios antigos e com acessos complicados, são algumas das limitações que persistem. Maria Manuela Cardoso, partilha a sua indignação: “Não tenho acesso às finanças da Figueira da Foz, quando preciso de ir lá tratar de um assunto, tenho de depender da boa vontade dos funcionários para ser atendida na rua, pois existe uma escadaria para aceder ao edifício.” Igualmente caricato segundo a enfermeira foi um episódio em que teve de participar de um assalto à sua mãe idosa e se deslocou à esquadra da PSP local: “Fui à PSP apresentar queixa e tinham três degraus à entrada e tiveram de me carregar para dentro para apresentar uma queixa”.

No entanto, nem tudo é negativo no panorama nacional da mobilidade reduzida. Segundo o embaixador da Associação Salvador, “ é tão importante referenciar os casos positivos como reclamar, ou até mais importante”. As autarquias estão hoje em dia muito atentas no acompanhamento das pessoas com mobilidade reduzida e empresas, como os CTT, são bastante ativas na criação de acessos às suas lojas permitindo um fácil acessibilidade a serviços tão importantes para todos. Um país com uma zona costeira tão grande tem nas praias um ponto fulcral para o bem-estar dos deficientes motores. De acordo com o embaixador da Associação “é importante reconhecer o esforço das autarquias, do turismo de Portugal e de muitas entidades privadas” para a melhoria do acesso às praias. Ainda complementa dizendo que “hoje em dia a lista de praias acessíveis de norte a sul do país é enorme”, o que permite que a comunidade de pessoas com mobilidade reduzida possa desfrutar os meses de verão na companhia das suas famílias.

“Mais acesso para todos”

Para ajudar os utilizadores de cadeiras de rodas, a Associação Salvador, lançou a aplicação “mais acesso para todos” que permite criar uma base de dados dos sítios com e sem condições de acesso a cadeiras de rodas. Carlos Nogueira informa que “qualquer pessoa pode participar e categorizar os sítios onde vai e referenciar esse sítio como estabelecimento não acessível, obrigando a cumprir a lei. Sublinha ainda que “a aplicação também serve para referenciar os locais com boas acessibilidades, permitindo a quem queira saber os sítios que pode visitar com segurança”.

Portugal está no bom caminho, embora seja penoso ainda hoje assistir a casos onde estão a decorrer obras novas e são cometidos atropelos à lei das acessibilidades por parte dos intervenientes. Carlos Nogueira diz, “sentir tristeza ao ver intervenções e depois ver que a obra não foi bem executada e que ficam ressaltos que impossibilitam o bom uso. Três centímetros podem ser intransponíveis para certo nível de lesões”.

Também Filomena Franco concorda com as melhorias que se tem feito sentir, referindo que, “o nosso país está a ficar um bom país para morar. Muitos locais já estão pensados para pessoas de mobilidade reduzida”. Com o conhecimento que ganhou viajando pelo mundo ao serviço da nossa seleção nacional, sente que Nova Zelândia é um bom sítio para um utilizador de cadeira de rodas viver tendo a vida facilitada, onde “os habitantes ajudam muito o próximo e tem um civismo espetacular”, segundo a ex-atleta de remo.

Para as pessoas com deficiência motora, muitas conquistas foram feitas nas últimas décadas e muitas estão ainda por concretizar, mas é ao nível da mudança das mentalidades que a luta é mais importante. “A acessibilidade física tem sido combatida e aos poucos tem havido melhorias, mas a mentalidade das pessoas é mais difícil de mudar”, desabafa Filomena Franco.  A ex-atleta alerta que “muitos de nós, fazem o mesmo que qualquer pessoa e a cadeira não nos limita. Às vezes fazemos mais até que as outras pessoas, pois o ter de conviver com a adversidade dá-nos uma força do outro mundo”.

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