“Os preconceitos são os mesmos, mas com a visibilidade nas redes sociais dá a impressão que são mais”
Professora de inglês e a terminar o doutoramento, será que ainda importa referir que é de etnia cigana? Maria Miguel fala sobre o que é crescer nesta cultura, dos preconceitos e do impacto que os mesmos têm na opinião pública.
Por Raquel Guerra
Pode descrever o que é a cultura cigana?
Em poucas palavras é uma cultura, a meu ver e de quem está de dentro, bonita, alegre e de união familiar. Principalmente a alegria, é das melhores partes da cultura, porque às vezes o mundo lá fora pode estar um caos, mas há sempre aqueles dias de festa, em que nos esquecemos que há problemas.
Na época da escola era mais conhecida pela etnia ou pelo Renault 4L cor de rosa?
[Risos] Até uma certa idade a referência era a etnia, e quando tive a possibilidade de conduzir sim, foi pela 4L cor de rosa. Todos sabiam que eu estava na escola.
Nasceu numa família com raízes ciganas, mas hoje em dia não vive de acordo com todas as normas dessa cultura. Quando é que percebeu que não queria viver de acordo com essas tradições?
Eu nasci dentro da cultura cigana, mas talvez durante a minha adolescência apercebi-me de que não queria reger-me pelas tradições. É quase um 50-50, eu tenho a parte do meu pai que tem essas raízes ciganas e a minha mãe que não tem qualquer ligação. O meu pai sempre demonstrou às filhas o que era o bom da cultura cigana, mas fomos percebendo, à medida que fomos crescendo, aquilo que queríamos. Tanto eu como as minhas irmãs apercebemo-nos daquilo que éramos e acabámos por tentar viver o melhor de dois mundos. Quase como disfrutar de tudo aquilo que era bom, mas também viver de outra forma e não abraçar inteiramente tudo o que eram os costumes, visto que os nossos pais nos deram essa possibilidade. Nunca uma das formas de viver nos foi imposta, tivemos sempre liberdade nesse aspeto. Viver de acordo com a cultura cigana é ter algumas restrições, que para mim, para a minha pessoa e para aquilo que eu já estava a querer ser, não faziam sentido.
Sendo a cultura cigana tão enraizada, como foi o processo de se afastar dos costumes e das tradições ciganas?
Sim é uma cultura bastante enraizada, como qualquer cultura minoritária, em que há aquele sentimento de pertença e de manter intacto quase que um legado. Eu nunca me vi obrigada a afastar-me dos costumes e das tradições, porque nem sequer me foram impostos. Eu conseguia viver e conviver com a maior parte dos costumes e deixar de parte aqueles que não me agradavam. Nunca foi um processo de afastamento de forma negativa.
Em que sentido é que o apoio da família foi importante?
Sempre foi incondicional e baseado na liberdade, era muito no sentido do “vocês têm um pensamento independente, têm de fazer o que acham que é correto”, era o que os nosso pais nos ensinavam. O meu pai tem realmente pessoas na família que, como se diz, são de “pura etnia cigana” (de pai e mãe ciganos). De certa forma nós podíamos pensar que seria incómodo para o meu pai não optarmos por ter essas vivências, mas acabou por não ser assim.
Que perspetiva de vida tenta passar às suas sobrinhas e futuramente aos filhos?
Tudo aquilo que os meus pais também me passaram, tanto a mim como às minhas irmãs. Primeiramente, vou-lhes dar essa possibilidade de escolha, vou-lhes mostrar o que é a comunidade cigana e que não é aquilo que às vezes demonstram. Os meus filhos vão ter as mesmas possibilidades de escolha que eu tive.
Conforme foi crescendo como é que era imaginado o futuro, quais eram as ambições, sonhos e objetivos?
Eu tive fases, principalmente na adolescência, às vezes imaginava como é que seria se casasse com uma pessoa de cultura cigana… era engraçado porque tínhamos as festas víamos as pessoas e acabávamos por ter aquelas paixonetas da época, e eu pensava como é que seria…. Será que se eu casasse com uma pessoa cigana tenho de ter filhos, viver para o meu marido e para a feira… Estas questões sempre foram crescendo comigo, mas num dado momento percebi o que queria e então foram nascendo as ambições e os sonhos, em que viver inteiramente na etnia cigana não fazia parte dos planos.
Sei que pretende casar-se em breve, vai ser um dia planeado tendo em conta as tradições ciganas ou não?
[Risos] toda a gente pergunta isso, porque os casamentos ciganos são conhecidos pelas grandes festas de no mínimo três dias. Mas não, será algo mais simples.
Porquê?
O meu namorado não pertence à etnia cigana e as tradições ciganas em relação ao casamento têm certos pormenores que só podem acontecer se ambos os noivos forem ciganos.
Numa publicação do Facebook escreveu que “A educação tem raízes amargas, mas os seus frutos são doces” o que é isso significa para si?
Significa muito, diz muito de mim, da minha própria vida e diz muito da minha cultura. Esta frase está muito relacionada com o espírito de sacrifício. A parte das raízes amargas, é a questão de termos de fazer sacrifício de ter de lutar pelas coisas, para mais tarde usufruir o bom que eles podem dar.
Se disser que é a “Maria, professora de inglês” ou a “Maria que tem raízes ciganas”, a maneira como as pessoas a tratam muda?
Infelizmente ainda muda… às vezes parece que não faz sentido estar a falar sobre isto e falar do preconceito, do racismo… Mas ainda faz muito sentido estas questões serem faladas, quem está deste lado percebe que à medida que vais crescendo as pessoas não esperam mais de ti, então tu tens a necessidade de provar mais que os outros. Eu não tenho problemas em assumir que uma parte de mim é cigana, mas na primeira interação com as pessoas, se disser à priori que sou cigana nota-se o preconceito.
Como é lidar com as crianças? Elas espelham o mesmo preconceito que está presente na sociedade?
Sim, as crianças são o espelho daquilo que lhes é dito e lhes é incutido em casa. Adoro lecionar, mas elas apenas se apercebem quando são chamadas à atenção, porque em determinadas situações o preconceito e esse subestimar a etnia nota-se. Depois desculpam-se pelo que disseram, os mais crescidos, porque os mais novos são o espelho do que se passa em casa, então se o tentar corrigir eles vão dizer na mesma.
Sente que a sociedade apenas se foca em ter uma perspetiva negativa da comunidade cigana?
Não posso dar uma visão completamente negativa das coisas, porque na verdade também não é assim. Temos uma parte da sociedade que já tem uma visão mais positiva da comunidade cigana, mas ainda há outro tanto a pensar que os ciganos são os que vivem do rendimento, os que fazem asneiras, os que roubam… até porque, hoje em dia, temos políticos que fazem este tipo de propaganda infeliz.
Os preconceitos para com a comunidade cigana são cada vez mais ou cada vez menos?
Acabam por ser os mesmos preconceitos, mas como têm mais visibilidade nas redes sociais dá a impressão que são mais. E o tipo de preconceito, atitudes preconceituosas e racistas estão a ser cada vez mais filmados e com uma projeção diferente que até então não acontecia, o que leva a que tenham um impacto maior.
O que pensa de termos deputados que criticam publicamente a comunidade cigana?
Acho que se têm uma voz e um impacto nacional, deviam fazer jus às suas funções e ajudar a educar civicamente as pessoas e não incitar a pensar em ideias que não são concretas. Basta uma pessoa que tenha importância mediática centrar-se em apenas um acontecimento negativo, para levar toda a gente a pensar de forma negativa também.
Que impacto é que estas opiniões podem ter na opinião pública?
Um impacto brutal porque é visto pela sociedade como uma figura de autoridade e a sua maneira de pensar afeta diretamente a maneira de pensar das pessoas. Quer seja no bom ou no mau sentido… Mas isso já depende de político para político.
Qual é o papel que as personalidades de etnia cigana têm na desmitificação dos preconceitos que existem na sociedade?
Devido à visibilidade que têm, assumem um papel importante, porque conseguem demonstrar que o cigano, não é só o cigano que casa cedo e tem não sei quantos filhos, mas é o cigano que é estilista, advogado, professor, jogador de futebol. Estas personalidades, independentemente da fama, ajudam a construir um pensamento mais positivo ou menos preconceituoso das pessoas que pertencem à comunidade cigana.