Meio século não apaga as marcas da Guerra Colonial
A Guerra Colonial terá sido a face mais dura e sangrenta do regime ditatorial que durante 40 anos governou Portugal. Perpetrada em três das colónias portuguesas, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, em resposta aos movimentos de libertação e independência destes povos, ceifou vidas, devastou famílias e deixou profundas marcas físicas e psicológicas em todos aqueles que com ela se cruzaram.
Por Ana Rita Pereira
Nas décadas de 60 e início de 70 do século XX, as alternativas para os jovens do sexo masculino que atingiam a maioridade eram apenas duas. Cumprir a recruta militar e ser enviado para África, para combater por uma causa que desconheciam, numa guerra para a qual não tinham sido preparados. Ou deixar tudo para trás, e fugir, ilegalmente, do país.
Ricardo Lopes e Jorge Figueiredo, amigos desde os tempos de escola na cidade de Viseu, escolheram caminhos opostos.
Ricardo seguiu o percurso que o Estado Novo delineou para si, tendo sido um dos 30 mil combatentes que regressou de África com lesões permanentes, entre os cerca de um milhão que participaram no conflito armado. “Estive em Angola apenas três meses. A explosão de uma mina terrestre levou-me a perna esquerda e provocou-me lesões menores no resto do corpo”, lamenta-se o antigo combatente.
Aos 22 anos, as perspetivas para Ricardo não eram as mais animadoras. Sem estudos, com uma perna amputada e sem qualquer experiência profissional, as oportunidades de trabalho eram escassas. Às dificuldades físicas, somavam-se as consequências psicológicas: “Revivi a explosão daquela mina centenas de vezes. Acordado ou a sonhar, os tremores, suores e ansiedade davam-me todos os dias”.
As marcas psicológicas da Guerra Colonial acabariam por ser ainda mais dramáticas do que as físicas. Se os dados do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA) apontam para nove mil mortos e 30 mil feridos graves, o número de antigos combatentes com stress pós-traumático de guerra superará os 140 mil. Os relatos impressionam: privação de sono, ataques de ansiedade, dificuldade de concentração e ímpetos de violência. Consequências com as quais o Estado não soube lidar, demasiado focado no tratamento das mazelas físicas.
Apesar de transversais, os traumas associados à Guerra são diversos. Se muitos, como Ricardo, revivem o medo que sentiram da morte, outros sucumbem perante a memória dos colegas e amigos que perderam as vidas nos seus braços. Há ainda um terceiro grupo, porventura o mais gravoso, que inclui todos aqueles que experimentaram a sensação de tirar a vida a outro ser humano. Em entrevista ao Público, Afonso Albuquerque, psiquiatra pioneiro no tratamento do stress pós-traumático de guerra, explica que estes jovens “partiram para a guerra como heróis e regressaram, já depois do 25 de Abril, como assassinos”. A insuficiente preparação psicológica e a desconstrução dos mitos da propaganda salazarista, após a Revolução, tornaram a realidade das atrocidades cometidas em África demasiado difícil de lidar para muitos dos antigos combatentes.
Jorge Figueiredo, opositor do regime de inspiração fascista, recusou bater-se por uma causa com a qual não concordava. “Sempre defendi o direito à autodeterminação dos povos. Não suportava a ideia de arriscar a minha vida, a dos meus pares e, sobretudo, daqueles cujos ideais eu subscrevia, para servir apenas os intentos de um ditador”, explica.
Decidiu, por isso, partir. Em 1972, com 19 anos, abandonou a casa, a família e o país, e desertou sozinho rumo a França. Sem documentação, contactos ou qualquer apoio, procurou trabalho em França, na Alemanha e no Luxemburgo, onde finalmente conseguiria fixar-se. “Foi muito complicado para mim na altura sair do país sozinho e deixar tudo para trás, sem ter certezas do que me esperava lá fora”, comenta.
Foi pelos jornais que tomou conhecimento da queda do Estado Novo, em 1974. Sabia, contudo, que essa revolução tinha sido executada pelos mesmos militares a que recusara juntar-se para a Guerra Colonial. Regressar ao país poderia representar a sua prisão, pelo que foi adiando sucessivamente esse retorno.
Fê-lo apenas em 1982, exatamente dez anos depois do exílio. Receoso, conseguiu regularizar a sua situação militar e evitar a prisão através do pagamento das taxas de serviço militar.
Não se livrou, contudo, do estigma moral de refratário. No total, entre desertores, aqueles que fugiram entre a recruta e o embarque para África, refratários, que se exilaram após a inspeção, e os faltosos, que nem compareceram à inspeção, estima-se que o país tenha visto partir 240 mil jovens entre 1961 e 1974. Miguel Cardina, historiador especializado no estudo da Guerra Colonial, defende que o país ainda não perdoou estes homens. Em entrevista à Radio Renascença, o historiador considera que “se, por um lado, eles estão do lado certo da História porque recusaram a guerra, por outro lado, ao terem saído da instituição militar, acabaram por não participar nesse processo de mudança política”. O tema mantém-se como tabu, face ao julgamento moral, lesivo e amargo, “associado ao binómio coragem/cobardia”, conclui Miguel Cardina.
Marcas da guerra
Hoje, os antigos combatentes têm entre 65 e 75 anos. O Estatuto do Antigo Combatente, que poderia garantir o aumento das pensões de reforma e de invalidez, mantém-se por aprovar. Ricardo Lopes lamenta a indiferença do Estado face aos antigos combatentes. Depois de alguns anos a realizar pequenos biscates como canalizador e de submeter inúmeros requerimentos, conseguiu finalmente a reforma e uma pensão adicional pela incapacidade física. “Insuficientes para compensar os rendimentos de que tive de abdicar pela deficiência física. E, sobretudo, insuficientes para alguém que arriscou a vida pelo país”, aponta.
As marcas da guerra, essas, permanecem bem visíveis. Para lá da lesão física, a medicação bidiária para a ansiedade não lhe permite esquecer o que passou. “Antes isso do que os pesadelos que me atormentavam até começar a ser seguido clinicamente”, afirma o antigo combatente. Ricardo é um dos 500 utentes da Associação de Apoio aos ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra (Apoiar), fundada em 1994 com o intuito de apoiar ex-combatentes com stress pós-traumático, bem como os seus familiares.
Jorge Figueiredo não esteve em África, mas recorda com amargo a pior década da sua vida. “Foram dez anos que me roubaram. Uma década longe de todos os que amava”, recorda o viseense. Jorge lamenta a incompreensão de alguns dos pares face à decisão que tomou. “Eu recusei ser cúmplice de um regime com o qual não concordava. Hoje, tomaria a mesma decisão”, defende.
As histórias de Jorge e de Ricardo são contadas na primeira pessoa. Muitas, perto de nove mil, não o são. Segundo a EMGFA, foram 8 831 os militares que perderam a vida no conflito, e cujas famílias receberam o tão temido telegrama do Ministro do Exército. Muitas destas famílias conservam ainda, na ausência de outra forma de homenagem, o recorte do jornal em que o Ministério da Guerra anunciava a morte em combate do seu filho, irmão ou sobrinho. Meio século depois, a angústia pelas perdas na “defesa da Pátria”, conforme o Ministério do Exército as intitulava, não esmoreceu.
Jorge e Ricardo são duas faces da mesma moeda. São apenas dois entre os 1,5 milhões de portugueses que viram a sua vida diretamente afetada pela Guerra Colonial. Importa, contudo, ouvir as suas histórias. Porque por detrás dos números estão pessoas, com vivências e percursos próprios. Em comum, esses percursos têm o medo, a mágoa e o sentimento de injustiça. Mas cada um dos caminhos representou desafios, barreiras e obstáculos diferentes. Mais do que isso, a meta, para aqueles que lograram atingi-la, trouxe consequências cujo impacto se estende até aos nossos dias.
É difícil encontrar uma família portuguesa que conviva saudavelmente com o tema da Guerra Colonial. Na forma da morte, da lesão física, do dano moral ou da ausência, o conflito deixou uma profunda marca no seio da sociedade nacional. Uma ferida aberta, que nem o tempo tem conseguido cicatrizar.
O saldo da Guerra Colonial é claro: uma Guerra sem vencedores, mas com mais de dois milhões de vencidos.