“Fique em casa”, o mote da atual pandemia que não assegurou as vítimas de violência doméstica
Inês Coelho, 31 anos, é associada à União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), fazendo parte do Núcleo de Viseu. A jurista, que declara ser feminista, revela o motivo que a levou a envolver-se na associação que distingue o género feminino: “Sempre considerei de extrema relevância dar continuidade ao trabalho desenvolvido por todas as mulheres que vieram antes de nós e que nos deram a possibilidade de usufruir de uma plenitude de direitos pelos quais estas lutaram, por poder, enquanto mulher, respirar alguma liberdade. Também por do ponto de vista formal em algumas matérias não ser discriminada pelo meu género. Quero uma igualdade plena e efetiva para todas as pessoas. É por ela que luto e é por essa luta que faço parte da UMAR.”
Reportagem de João Nogueira
Segundo informam os dados do Governo, os homicídios em contexto de violência doméstica aumentaram 20% relativamente aos primeiros três meses de 2020. No primeiro trimestre deste ano, entre seis homicídios em contexto de violência doméstica, quatro eram mulheres, enquanto em 2020 no mesmo período, registaram-se cinco homicídios, em que também quatro eram mulheres.
A jurista declara a importância de haver uma supervisão deste crime público, e enquanto profissional na área, considera que “ainda há muito por fazer neste âmbito e a UMAR com todas as suas valências fazem um trabalho extremamente relevante na defesa dos direitos das mulheres do nosso país”. Relativamente aos dados expostos pelo Governo, Inês Coelho acrescenta: “pensa-se que o primeiro confinamento agudizou os casos de violência doméstica já existentes, no entanto, é curioso observar que o número de feminicídios comparativamente com o período homólogo de anos anteriores diminuiu”.
Violência doméstica durante a pandemia
A pandemia de Covid-19, e o consequente primeiro confinamento de 2020, levou a um aumento dos casos de violência doméstica. “Se a casa é um lugar seguro para a maioria das pessoas, para as vítimas de violência doméstica não é”, disse a secretária de Estado Rosa Monteiro em declarações ao Observador.
Inês Coelho concorda e acrescenta que devemos questionar o mote “fique em casa” partilhado pelo mundo inteiro e se a casa é um espaço seguro para todos. A profissional afirma como o confinamento social não foi benéfico para as vítimas de violência doméstica, visto que “as mulheres são encerradas num espaço que lhes é mais perigoso do que o espaço público, principalmente quando partilhado permanentemente com o perpetrador”.
Para a jurista, a pandemia de Covid-19 contribuiu para uma reinvenção e surgimento de novas formas de violência doméstica: “os agressores reinventaram-se e ameaçaram expor as vítimas a objetos contaminados, dificultaram-lhes o acesso ao computador para que estas não conseguissem trabalhar a partir de casa, proibiram-nas de usar máscara. Até nas relações de namoro se assistiu a um aumento da cyberviolência, ao revenge porn, às ameaças de publicação nas redes sociais ou durante reuniões online de fotografias íntimas da vítima”.
Após um ano de pandemia de Covid-19, o Governo anunciou um novo plano de reforço de prevenção e combate à violência doméstica, necessário pelas fragilidades causadas neste período e pelos três meses de férias que se aproximam. Em declarações ao Observador, a secretária de Estado Rosa Monteiro afirma que “este plano de reforço da prevenção e resposta congrega todas as partes a estarem ainda mais ativas no período crítico de férias escolares e laborais que se aproxima”, sublinhando que “a denúncia, a procura de apoios e de informação são passos decisivos para encerrar um processo de mudança e de superação, rompendo com ciclos de dúvida, medo e de sofrimento”.
De acordo com um estudo realizado pelo Observatório das Mulheres Assassinadas da UMAR em Portugal durante a pandemia, entre março e maio de 2020 foram praticados 4 feminicídios e 9 tentativas, sendo que 3 dos 4 aconteceram durante o estado de emergência. Além das 4 mortes registadas, contabilizaram-se ainda 33 ameaças de morte no mesmo período em contexto de violência doméstica tendo sido 18 delas durante o Estado de Emergência.
Ainda assim, o número de mortes de vítimas de violência doméstica do género feminino diminuiu comparativamente com o período homólogo de anos anteriores. Segundo as autoras do estudo, isto aconteceu por motivos: a cobertura mediática intensiva da pandemia que deixou estes casos com menos visibilidade; o sentimento de medo vivenciado pelas vítimas, sendo que muitas delas adotaram uma postura de ainda maior submissão e complacência para não agitarem o agressor causando situações de violência e de risco mais elevado que pudessem eventualmente culminar em feminicídio; e por último, a implementação de medidas que permitiram às vítimas ter acesso à Rede Nacional de Apoio à Vítima de violência doméstica, ainda que confinadas no mesmo espaço que o agressor.
Como revela um estudo da APAV sobre “Violência contra as mulheres e violência doméstica em tempos de pandemia de Covid-19: caracterização, desafios e oportunidades no apoio à distância”, divulgado no início do mês de junho, o apoio às vítimas foi condicionado sem preparação prévia, obrigando ao recurso de ferramentas à distância. O estudo revela que mais de 70% dos atendimentos efetuados pela APAV foram realizados por contacto telefónico. Em declarações ao Observador, os investigadores da Cooperativa de Ensino Superior Egas Moniz e da Universidade Fernando Pessoa deste estudo afirmam ser “urgente reestruturar a formação técnica neste domínio, capacitando as organizações de apoio e os seus profissionais para o apoio à distância em todas as suas valências”.
Os trabalhos da UMAR
A UMAR, formada dois anos após o 25 de abril em Portugal, “é hoje uma associação que se reclama de um feminismo comprometido socialmente, empenhada em despertar a consciência feminista na sociedade portuguesa”.
A associação que se estende a nível nacional “tem Centros de Atendimento a Mulheres vítimas de Violência Doméstica e de Género onde é prestado apoio psicológico, jurídico e social de forma gratuita e confidencial. Estes Centros de Atendimento estão localizados em Almada e no Porto, sendo que no Porto existem dois: o “P’RA TI” direcionado para vítimas de violência doméstica; e o “EIR” mais focado para a problemática da violência sexual”, confirma Inês Coelho. A UMAR dispõe também de: dois Gabinetes de Apoio à Vítima, localizados nos DIAP de Coimbra e Lisboa Sul, casas de abrigo para as mulheres vítimas de violência doméstica, obrigadas a deixar as suas casas muitas vezes com os seus filhos. Em Viseu, existe “um Centro de Atendimento a Mulheres do Município de São Pedro do Sul, onde trabalho, criado em parceria com a CIG (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género) cuja atuação conta com a colaboração e supervisão da UMAR”, divulga Inês Coelho.
As mulheres que abordam a UMAR fazem-no devido a vários motivos. Inês Coelho aponta: “Somos procuradas por mulheres vítimas de violência doméstica e de género que precisam de ajuda em grande parte dos casos; também temos todas aquelas que se juntam a nós pelo ativismo feminista, pela nossa vertente cultural que tem estado muito ativa no formato online e permite que várias pessoas de vários pontos do país e de diferentes idades se juntem, por exemplo, em torno de uma atividade chamada “Leituras Partilhadas”. Outras mulheres também por se identificarem com o trabalho que é feito pela associação. E também recebemos pedidos de jovens estudantes que solicitam cooperação para trabalhos académicos ou até mesmo para a realização de estágios em diversas áreas”.
Até agora, Portugal já contabiliza quatro vítimas mortais do sexo feminino em contexto de violência doméstica. Inês Coelho, da associação UMAR, afirma perante estes dados que, apesar de os números baixarem relativamente a anos anteriores, “as mulheres continuam a morrer às mãos dos seus maridos, companheiros, namorados e para que isto não aconteça, elas são forçadas a abandonar as suas casas, muitas vezes com os seus filhos”. Para evitar o progresso dos números, o Governo lançou a junho deste ano um Plano de Reforço de Prevenção e Combate à Violência Doméstica, visando proteger e apoiar as vítimas que, durante os consecutivos confinamentos da pandemia tiveram de partilhar o mesmo espaço com os seus agressores.