“Corpos, tiros, bombardeamentos, o cheiro do mato e medo é o que mais me lembro”

José Oliveira, aos 22 anos, é enviado para a Guerra Colonial para defender Portugal. Em Angola, começa por combater contra os movimentos de libertação – UNITA, MPLA e FNLA – que desejavam a libertação do seu país. Agora, José tem 66 anos, reformado e recorda memórias que considerava inesquecíveis deste conflito. Fala-nos um bocado da sua experiência no pós-guerra, em primeira pessoa.

Por Andreia Duarte

Ainda se lembra do dia em que foi para Angola?

Claro que me lembro. Fui no dia 4 de dezembro de 1974. São memórias que nunca se esquecem. Corpos, tiros, bombardeamentos, o cheiro do mato e medo é o que mais me lembro.

 

E ficou lá quanto tempo?

Quase um ano, voltei no dia 20 de outubro de 1975. Estivemos lá, mais ou menos, até terem declarado independência, que foi no dia 11 de novembro. Mesmo sendo pouco tempo comparando com outros soldados, foi uma experiência muito marcante para mim. Vi e vivi coisas que a vida nunca me tinha preparado para tal. Acho que ninguém está preparado para estas coisas.

 

Que idade é que tinha quando foi?

Tinha 22 anos, mais ou menos. Era jovem. Um jovem soldado, bom corpo para combate e uma mente fresca com os reflexos bem apurados. Era sangue novo e isso é que importava na altura.

 

Foi obrigado a ir ou foi voluntário?

Naquela altura ninguém queria ir, era tudo obrigado a ir. Fui para lá porque me mandaram. Não havia escolhas ou não quereres. Era jovem, bem constituído e pronto era bom partido para ir defender o nosso país.

 

Antes de ir, conheceu alguém que tivesse ido para a guerra?

Sim, foram os meus dois irmãos mais velhos. Felizmente nunca lhes aconteceu nada. Mas muitos amigos que fiz na guerra, infelizmente, não sobreviveram. E isso é uma das mágoas que ainda enfrento hoje.

 

Quando foi para Angola, já era casado?

Não, ainda não era. Mas namorava com a minha atual esposa, ela estava na Alemanha e eu lá. Depois quando fui para Portugal ela saiu de lá para vir ter comigo. Foi um relacionamento à distância.

 

E como é que comunicava com a sua futura esposa e com a sua família?

Era por cartas. Antigamente não havia internet, telemóveis, computadores nem nada disso.

 

Ainda têm essas cartas?

Não. Por um lado, até gostava de ainda ter essas recordações, mas por outro não. Tinha lá muita história, era um diário basicamente. Contava a minha rotina e as minhas preocupações. Foi um período muito triste.

 

Como é que eles (família) ficaram quando souberam que ia para Angola?

Não ficaram muito contentes não. Mas tinha de ser, eu tinha de ir. Custou mais principalmente à minha mãe. Já lhe tinham morrido dois filhos afogados, foram dois para a guerra e depois fui eu, ela sofreu muito. Ela e todas as outras mães, claro. Mas pronto, teve de ser forte, tinha 7 filhos mais novos que eu e tinha de cuidar deles. O meu pai era mais frio, eu sabia que estava preocupado comigo e na altura com os meus irmãos, mas não era pessoa de o mostrar.

 

Ainda se lembra da sua viagem para lá?

Lembro-me, fui de avião. A ir para lá e a vir para cá. Houve aquele “friozinho” na barriga por ser a primeira vez, mas no meio daquele ambiente de guerra foi a menor das preocupações.

 

Ainda se lembra do que sentiu quando deixou o seu país para ir combater num país tão longe?

No início fiquei muito assustado, como acho que fica toda a gente que vai para uma situação deste obrigado. Mas com o tempo tive de me habituar à ideia, não podia fugir, como eu iam muitos. As amizades que fiz também facilitaram a adaptação, mas foi um pouco complicado não ter grandes notícias da minha família.

 

Quando aconteceu o 25 de abril, onde estava? Estava cá em Portugal?

Estava em Bragança. Estava no Norte. Ou seja, nasci em Viseu, mas na altura estava em Bragança a trabalhar.

 

Com a tropa?

Sim, andava lá na tropa. Estava a tirar a minha especialidade.

 

Qual era a sua?

Primeiro tirámos a recruta, depois a especialidade. A minha era sapador de minas.

 

Quanto tempo demorou a tirar essa especialidade?

Mais ou menos três meses.

 

Enquanto esteve em Angola, alguém morreu ou ficou ferido do seu grupo/alguém que conhecesse?

Quando estivemos em Cabinda, no Dinge, conheci lá um homem que levou uma bala nas costas e saiu-lhe na barriga. É a memória mais viva que tenho. Foi bastante chocante ver alguém às portas da morte mesmo à frente dos meus olhos. Eu acho que um jovem de 22 anos não está mentalmente preparado para ver estas coisas.

 

Morreu?

José Oliveira Não. Veio para Portugal, mas não morreu. Pelo menos na altura não morreu. Ainda fui levá-lo a Cabinda, apanhámos uma trovoada tão grande no caminho… Cheguei a temer pela vida de nós os dois. Mas, pronto, eram dificuldades que tínhamos de passar diariamente.

 

E você, alguma vez ficou ferido?

José Oliveira Não, felizmente não. Soube-me defender. Fui um sortudo por isso, agradeço a Deus todos os dias por isso. Parecia o jogo das escondidas. Quem se conseguisse disfarçar melhor, nunca era baleado ou apanhado.

 

E alguma vez lhe passou pela cabeça que ia morrer?

Sim claro, todos os dias. É difícil não o pensar quando estamos num ambiente de guerra e quando vemos corpos mortos no chão. Nunca sabermos se vamos acordar a meio da noite ao som de tiros, ou se vamos acordar sequer.

 

Acha que a sua ida para Angola teve algo de positivo?

Naquela altura havia alguma coisa positiva? Uma pessoa ir para a guerra não é positivo. Os meus irmãos e alguns amigos contaram-me cada história mesmo chocante, não sei como é que eu ficava se visse alguma coisa daquelas que eles. É como, por exemplo, quando ouço falar das guerras nos países de Leste arrepio-me todo. É triste ver como fica o estado das cidades e aquelas pessoas e crianças todas. Seja numa parte do mundo ou outra, parece que nunca paramos de estar em guerra.

 

Ainda mantém contacto com os homens que o acompanharam lá em Angola?

Não, infelizmente já não sei nada deles. Sei de dois ou três que já morreram. Vai-se perdendo o contacto. E só nos dias de hoje vamos conseguindo novidades de algumas pessoas.

 

Mas aquilo que viveu, tudo o que viu, o que aprendeu, não acha que teve alguma coisa de positivo?

Tinha lá bocados ainda bons, como o companheirismo entre nós todos. Tive outros maus, a maior parte deles. Mas pronto, faz-nos crescer como pessoas. Viver com as dificuldades. Às vezes não ter uma refeição para comer, não saber quando íamos voltar… é difícil.

 

Quando regressou para Portugal como se sentiu?

Senti-me aliviado, estava feliz por voltar a casa são e salvo e rever a minha família. Poder voltar à minha vida foi um alívio. Mas ficaram muitas marcas. Olhava para todo o lado para ver se estava a ser perseguido. Quando ouvia fogo de artifício arrepiava-me. Ou seja, a aflição real tinha acabado, mas as memórias experienciadas não me saíam da cabeça. Tive até de recorrer a uma psicóloga.

 

Considera-se, de alguma forma, traumatizado com esta sua experiência em África?

Traumatizado não diria, mas claro que há certas coisas que uma pessoa nunca esquece apesar de querer esquecer. Mas claro que no fundo dá-se mais valor à vida, num minuto podemos cá estar e no outro já não.

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