Além das 4 linhas: Os bastidores do futebol de formação
O campo do futebol de formação vai muito além dos metros quadrados que ditam as suas regras, é um campo vasto e fértil onde os primeiros toques na bola podem ser o início de muito na vida de uma criança. O futebol de formação é descrito como um universo onde sonhos ganham asas e desafios moldam carreiras, mas não só de técnica e táticas se faz esta aprendizagem desportiva, é necessário aprender que cada chuto é uma promessa, cada derrota uma lição e cada vitória é fruto de uma evolução a nível individual e coletivo.
Reportagem de Beatriz Viegas
Sever do Vouga é uma vila portuguesa no distrito de Aveiro, situada na região centro do país, com cerca de 12 mil habitantes. É neste concelho constituído por sete freguesias que nasceram Ana Gomes e Emanuel Monteiro. A jovem de 18 de anos joga atualmente no Clube de Albergaria, mas foi na sua terra-mãe que começou a formação desportiva. Já Emanuel Monteiro, de 29, é atualmente treinador do Feirense, mas, em comum com a atleta, teve um início de carreira nas suas raízes.
Juventude Académica Pessegueirense (JAP). Foi nesta casa que ambos começaram, em papéis diferentes, a sua jornada na formação de futebol. Emanuel Monteiro, em 2016, e Ana Gomes, em 2018, entraram na família da JAP e deram os primeiros passos naquela que é a sua carreira atual, mas o futebol já tinha entrado nas suas vidas anos antes. “O futebol está presente na minha vida desde sempre, cresci a ver os meus primos e o meu pai a jogarem e desde cedo percebi que era aquilo que eu queria. Acabou por se tornar o meu maior sonho e à medida que o nível de competição aumentava o meu interesse em tornar-me profissional foi crescendo com a mesma intensidade”, conta a defesa do Clube de Albergaria.
Foi dos intervalos da escola para o Pessegueirense que se deu a primeira transferência na vida da futebolista, que recorda o clube com imenso carinho e como um marco importante para os seus passos futuros. Ana Gomes reconhece também que o clube esteve ao seu lado quando enfrentou o primeiro grande desafio: os seus pais. Conseguir convencer os pais de que “o futebol também é para meninas” foi difícil, mas a JAP “abriu as portas aos seus sonhos” em conjunto com os princípios e valores que a jovem atleta diz trazer consigo até hoje.
A sua segunda casa foi o Sport Clube Alba, onde a jogadora diz ter ganho outra visão do desporto quando deixou de jogar apenas com raparigas e passou a jogar também com rapazes. Naquela que “é uma realidade completamente diferente”, a severense foi colocada à prova dizendo “ter de dar mais do que alguma vez tinha dado”, o que contribuiu para a melhoria das suas competências técnicas e garra para “sobreviver” à luta por um lugar no 11 inicial. Ainda assim, mesmo com algum trabalho individual, a futebolista diz ter aprendido que “começar no banco não significa que jogue mal” e tornou esse “problema” numa maneira de evolução. “Cresci nas vezes que fiquei no banco, tornei-me melhor jogadora, portanto ficar no banco faz-me sentir vontade de melhorar as minhas competências”, reforça.
Foi em situações de pressão como esta, que a dificuldade se criava a partir do seu psicológico. Ana Gomes realça que, como tudo na vida, o desporto traz consigo os “males normais”, resultantes das diferenças de competitividade e da pressão que sofrem para estarem sempre no seu melhor. O futebol feminino, em particular para a atleta, acrescenta ainda a pressão exercida pelos pais para “lhes provar que o esforço que eles faziam não era em vão”. Pressão essa que, por vezes, causava dúvida em relação às suas capacidades e chegava a baixar o seu rendimento, confessa.
Em momentos de desafios como estes é, muitas vezes, onde o papel do treinador faz toda a diferença. Emanuel Monteiro explica que, enquanto treinador, é uma referência para os mais novos, daí a grande importância das suas atitudes. É preciso estar atento a todo o plantel e perceber que as suas ações enquanto “orientador de todo o processo evolutivo dos jovens enquanto atletas, também marcará o crescimento dos mesmos enquanto pessoas”.
O treinador explica que na aprendizagem de um desporto o objetivo do treino é a preparação para a vitória. No entanto, vai muito para além disso, pois considera importante perceber que na formação há diversas formas de ganhar. Segundo Emanuel Monteiro, “um jovem atleta ganha quando não desiste, quando respeita o próximo, quando aprende a trabalhar em equipa, quando sabe lidar com a vitória e com o fracasso, entre outros.” Refere ainda que, no que toca à transmissão de valores, há uma importância extrema em, para além de formar bons atletas, conseguir ajudar a que estes se desenvolvam sustentadas em boas bases. “Penso que a melhor forma de transmitir bons valores é através do exemplo e do diálogo. E com as vivências que vamos tendo ao longo da época, vão surgindo bons momentos para intervir, elogiando ou reprimindo as boas ou más ações, respetivamente”, explica o técnico.
Existe ainda a questão da individualidade inserida naquele que é um desporto coletivo. O orientador do Feirense realça a sua importância e como os treinadores devem sempre “ter a sensibilidade para entender quais as necessidades de cada jogador”, tendo em conta os seus gostos, as suas vivências passadas, o seu nível motor, a sua velocidade de desenvolvimento, etc.
“Trabalhar no mesmo sentido”
Apesar de todos os seus deveres, os treinadores passam também por várias dificuldades, conta Emanuel Monteiro. Explica que há clubes onde colocam uma barreira entre treinador e encarregados de educação, mas na sua opinião “devemos todos trabalhar no mesmo sentido, que é a formação dos jovens atletas.” A pressão criada pelos pais em alcançar certos resultados por vezes pode ser igualmente desafiante, mas o severense diz que, quando acreditando estar-se no bom caminho, apenas é necessário continuar a caminhar.
O mesmo se passa em situações de violência verbal nas bancadas. “Os pais e atletas também vão um pouco atrás das condutas do treinador. Ou seja, quando um treinador está constantemente a mandar vir com o árbitro e/ou com os adversários, há alguma probabilidade de os adeptos repetirem esses mesmos comportamentos. Desta forma tento ser sereno e procurar respeitar todos os intervenientes do jogo. Contudo, quando ocorre alguma situação indesejada, tento sempre retirar o foco de tudo o que possa ser externo ao jogo e de tudo o que possa afetar os meus atletas”.
Segundo o relatório lançado pela Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto (APCVD), a época de 2022/2023 registou cerca de 5700 incidentes só na modalidade do futebol, mostrando a regularidade com que estes episódios se desenrolam.
Ana Gomes diz ter aprendido que “enquanto jogadora o que importa está a passar-se dentro das quatro linhas” e é esse o desporto que a faz vibrar. Ignora comentário alheios e assume que “as pessoas nas bancadas são personagens secundárias, face ao espetáculo que se passa no campo”.
“Ensinarem-nos a perder e a ganhar são fatores essenciais”
Os filhos de Sever mostram ainda concordar na importância que o educador desportivo tem em escalões de formação. “Ensinarem-nos a perder e a ganhar são fatores essenciais para criar jogares com princípios, e para mim, esse é o verdadeiro sentido de formar atletas que eventualmente se vão tornar jogadores profissionais”, explica a jogadora.
Para Emanuel Monteiro, o treinador de futebol de formação “é pouco valorizado” consequentemente levando ao fraco retorno financeiro. “Na maioria das vezes, o treinador de formação paga para trabalhar e vê-se obrigado e procurar subir escalões não só para crescer profissionalmente, mas para ser mais valorizado”.
João Sampaio, de 21 anos, natural de Nelas, Viseu, é atualmente jogador no Sezurense e treinador no Dínamo Clube Estação e explica como funciona a dualidade da formação futebolística na sua vida. “Como jogador ao longo da minha carreira tive toda uma linha de aprendizagem, da qual retirei tudo o que era positivo, como tirar algumas lições para a vida. Isso acaba por ficar connosco para o resto da mesma e quando começamos por nos tornar treinadores levamos sempre um pouco dos treinadores que nós tivemos e que levámos como exemplo”.
Estando em simultâneo nos dois lados do jogo, João Sampaio explica que tem sempre uma perspetiva diferente em cada situação. Como tem os seus treinadores como exemplo, tenciona ser um treinador de exemplo para os seus atletas e reflete que o facto de ser jogador o ajuda a ter a “capacidade de saber aquilo que os jogadores não gostam de ouvir ou fazer”. É por isso que o técnico acaba “por fazer sempre o melhor e da melhor maneira possível, para que não se perca a felicidade de jogar ao mesmo tempo que se aprende o jogo em si”.
O mesmo acontece na sua posição como jogador. Para o atleta, a sua visão de treinador influencia a sua postura no campo ao “tentar ajudar os colegas no posicionamento”. Ainda que por vezes fique um pouco “chato” diz que os colegas acabam por percebê-lo e por ouvi-lo, sabendo que só os quer ajudar.
João Sampaio também valoriza a formação desportiva e passagem de valores que deve ser feita na mesma. Ter recebido uma educação formativa com “disciplina, trabalho em equipa, coerência, empatia e gestão de emoções” faz com que hoje, na possibilidade de passar o testemunho a outros jovens, o faça sem hesitar.
Nos bastidores do futebol de formação, a paixão e a resiliência saem sempre com a taça na mão.