“Ninguém acredita de verdade que uma pessoa pode dizer que vive da cultura e da arte”

O fraco investimento no setor cultural continua a ser uma realidade, a par com os entraves que se colocam à criação artística. Um grupo de jovens estudantes tem em projeto a curta-metragem “Útil & Desagradável” e contam as dificuldades com que se têm deparado.

Reportagem de Verónica Oliveira

O setor da cultura, em Portugal, é recorrentemente um dos setores “mais esquecidos” nas propostas de Orçamento de Estado anuais e a falta de verba acentua o desvanecimento contínuo de projetos de arte únicos e originais por todo o país.

João Gomes, de 22 anos e natural do distrito de Viseu, é estudante na Covilhã no mestrado de Cinema. O jovem sempre conviveu com as belas-artes, mas o cinema tem lhe ocupado a maioria do tempo nos últimos dois anos. Este apreço pela área surgiu após terminar a sua licenciatura em Teatro e Artes Performativas, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), quando decidiu escrever um livro e se desafiar a adaptá-lo para um vídeo cinematográfico. 

As maiores dificuldades que João Gomes sentiu ao longo do seu percurso académico advém do período mais crítico da Covid-19, em Portugal. “A minha licenciatura ficou um pouco prejudicada, porque eu estava num curso que era muito prático e ter essas aulas via online não dá com nada. Também não consegui ter a oportunidade de estagiar porque as companhias estavam todas fechadas”, relembra o jovem.

A pandemia agravou ainda mais os problemas considerados crónicos no setor. Falta de rendimentos suficientes, pouca acessibilidade para investir e falta de apoios financeiros a nível municipal (através de fundos derivados das juntas de freguesias e câmaras municipais) e a nível nacional (pelo Ministério da Cultura) são os fatores que ajudam a alastrar ainda mais estas questões. Para o estudante de cinema, não existem apoios suficientes que cheguem e resolvam os problemas de todas as companhias artísticas, considerando que as “pessoas vivem atrás de migalhas ou são sete cães a um osso”.

Muita da desconsideração que vai existindo é, culturalmente, atribuída aos portugueses e à forma como veem os trabalhadores do setor. Nem todos consideram um artista um trabalhador fidedigno como é socialmente considerado um médico, professor ou advogado. João Gomes reitera que “como ninguém acredita de verdade que uma pessoa pode dizer que vive da cultura e da arte, não dão o dinheiro para uma pessoa poder viver com dignidade da arte”.

Ainda assim, o finalista de mestrado em Cinema, afirma que “é verdade é que se, de repente, isto tudo desaparecesse, as pessoas iam sentir muita falta”, sublinhando a necessidade da cultura na sociedade e na população, seja para entretenimento, aprendizagem ou devoção à própria arte.

Curta foca a distinção entre estar e sentir-se só

Atualmente, João Gomes está com um projeto de nível académico em mãos, a realização da sua primeira curta-metragem. Útil & Desagradável aborda a temática da solidão e as suas diversificadas vertentes. Aqui, o estudante assume o papel de realizador e guionista cinematográfico, onde se focou na captação distinta entre “estar-se só e se sentir só”.

João Gomes

A curta-metragem ainda não iniciou a rodagem fílmica por falta de verba suficiente. Ainda assim, a Universidade da Beira Interior (UBI) ajuda os seus estudantes e comparticipou uma parte do valor total necessário para se começarem as gravações. O montante não é suficiente e juntar dinheiro para um estudante universitário, em Portugal, acresce mais um problema na lista de contratempos que vão surgindo a João Gomes. “A faculdade dá algum dinheiro, mas é uma percentagem muito reduzida daquilo que eu realmente necessito para fazer o filme”, refere o realizador da curta.

Desta forma, João Gomes teve de arranjar estratégias de angariar mais fundos para concretizar esta obra e uma das soluções que arranjou foi expor o seu projeto na plataforma ‘GoFundMe’ onde, através do processo de crowdfunding, consegue adquirir mais valores monetários vindos de diversas pessoas.

Manuel Monteiro é amigo de João Gomes e, desde logo, decidiu apoiar financeiramente o amigo de longa data. “Eu contribuí com 15€ para o projeto. Sei que não é muito para aquilo que o João pretende, mas grão a grão ele vai conseguir chegar lá. Também gosto de apoiar estes projetos mais pequenos porque, muitas vezes, são aqueles que mais me marcam pessoalmente”, contou.

Cartaz do filme Útil & Desagradável

A equipa da curta-metragem é composta por 10 pessoas, desde diretores e chefes de produção, som e figurinos e assistentes de imagem, arte e realização. Francisco Dias é o diretor de fotografia do projeto. É estudante da licenciatura em Cinema na UBI e diz-se “honrado em participar na curta-metragem” e em ter sido convidado para um projeto na área, enquanto ainda termina o 3º ano do curso, pois “isto mostra que os alunos de mestrado dão valor e apostam nos estudantes da licenciatura”, complementa o diretor fotográfico do projeto.

Ruben Silva é, igualmente, finalista da licenciatura de Cinema e assume a função de assistente de imagem na curta-metragem. Sendo este um projeto de nível académico e que complementa o portefólio final de João Gomes, Ruben Silva destacou a dificuldade em chamar a atenção do público a conteúdo do âmbito escolar/universitário. “Este projeto acaba por se tornar um pouco mais invisível aos olhos das pessoas que não estão na academia e só conseguimos a tal atenção através das redes sociais”, constata.

Ruben Silva observa também que o público, em geral, nem sempre pretende acompanhar projetos mais pequenos e “quando se está a divulgar o projeto e se coloca na biografia que se trata de algo de âmbito académico, as pessoas perdem o interesse por acharem que não é tão profissional e que não é cinema propriamente dito”, mostrando que existe uma barreira entre o público tido como alvo e do público que quer se afastar dos métodos de cinema mais convencionais.

Útil e Desagradável é uma curta-metragem, que aborda a dualidade de uma mesma condição, a Solidão. É um filme que conta a trajetória de dois jovens: Sam, um rapaz cansado de viver isolado que decide que é a hora de mudar e Sali, uma rapariga que aprenderá a conviver com a sua própria companhia.

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