Alcatuna de Alcafache, memórias dedilhadas em corda de guitarra
Um tuno será sempre tuno para toda a vida. Vou-te contar, se queres saber e ensinar o que a Alcatuna quer dizer. É amizade e união, é o vestir de Alcafache ao coração.
Reportagem de Mariana Mendes
A sala estava escura, ouviam-se os murmúrios do público impaciente que antecipava pela atuação dos tunos de Alcafache. Escutavam-se passos atrás da cortina, o momento estava a chegar. De repente silêncio, as luzes acendem e o som da viola preenche suavemente os cantos do salão, sem que ninguém se apercebesse.
Deparamo-nos com o olhar focado daquilo que, para todos os presentes, era um forte pedaço cultural da freguesia onde nasceram. As melodias irradiavam alegria e boa disposição pela sala. A Alcatuna de Alcafache é exatamente isso, felicidade.
Nascimento de um marco cultural
O que começou por ser um projeto entre seis amigos de uma pequena freguesia do centro de Portugal, rapidamente se tornou num dos maiores fatores de notoriedade de Alcafache e, posteriormente, do concelho de Mangualde.
O grupo musical Alcatuna de Alcafache surgiu como um projeto a ser realizado nos Estados Unidos da América em 2000. Devido a problemas internos por parte da comissão organizadora, a proposta foi cancelada, contudo o grupo sentiu que tinha pernas para andar e deu início ao seu percurso musical que, até hoje, é reconhecido a nível nacional e internacional. Atualmente a banda é constituída por 15 membros, sendo que muitos partiram para o estrangeiro sem esquecer as suas raízes musicais, enquanto tunos.
Cada nota musical, cada corda de guitarra transmite os princípios de união, companheirismo, família e amizade que, segundo António Amaral, topógrafo e fundador da Alcatuna de Alcafache, guiam o grupo em cada projeto que realizam.
De Portugal para o mundo
Com o intuito de espalhar alegria através das suas músicas, o grupo já estendeu as suas origens pela Europa, nomeadamente pelo vizinho do país lusitano, França e Inglaterra. No ano de 2013, os 15 tunos viajaram até à Bulgária, numa iniciativa entre a Câmara Municipal de Mangualde e a Câmara de Yambol, onde representaram as suas raízes no decorrer do festival Kukerlândia, evento tradicional de celebração da primavera e esperança de boas colheitas.
A nível nacional, o grupo destaca-se pela animação que leva para os palcos de diferentes pontos do país, sobretudo Viseu, Guarda, Vila Real e Santa Comba Dão. Em 2017, os tunos de Alcafache estiveram presentes na abertura do XI Festival Tosta Mista da Estudantina Universitária de Viseu e recentemente, em 2021, “a Alcatuna apoiou a elaboração e apresentação do livro Mangualde, “O nosso património” do arqueólogo e tuno António Tavares”, conta António Amaral.
22 anos de história
“A Alcatuna é um projeto com mais de 20 anos, que tem sobrevivido ao tempo e que muito tem contribuído para a notoriedade da freguesia de Alcafache”, admite João Lopes, ex-vereador da cultura da Câmara Municipal de Mangualde.
Com o decorrer dos anos, o grupo tem vindo a desempenhar um papel formativo, tanto a nível musical como a nível social. “Tem sido preponderante na preservação de um espólio imaterial de extrema importância e que se relaciona com o facto de Alcafache ter sido nos últimos 100 anos um importante núcleo de formação musical”, considera o ex-vereador da cultura.
Recentemente, a 6 de janeiro de 2022, os tunos celebraram o seu 22.º aniversário. Embora a pandemia tenha impossibilitado as celebrações nos últimos dois anos, é tradição realizar-se um evento com duração de dois dias, que conta com uma gala e atuação por parte da Alcatuna de Alcafache.
Todos os anos, os habitantes da freguesia e do concelho reúnem-se no Centro Paroquial de Alcafache para recordar, ao sabor do vinho e de uma refeição tradicionalmente portuguesa, as memórias e feitos da banda. João Lopes realça o impacto do grupo durante a sua época de festividade. “A Alcatuna tem uma enorme preponderância na freguesia. Se outras dúvidas houvesse, ficariam dissipadas só de constatar o número significativo de pessoas que se inscrevem nas galas dos seus aniversários e o facto de esgotarem todos os anos o número de lugares disponíveis, quer no jantar, quer no dia da atuação”, realça.
Dos palcos ao estúdio
O abalo súbito da vaga pandémica da Covid-19, exigiu que o grupo se adaptasse à nova realidade. As atuações foram canceladas, mas a motivação por espalhar boa disposição passou dos palcos para o estúdio. “Conseguimos adaptarmo-nos, apesar de não termos tido atuações”, diz Horácio Lopes, soldador e membro da Alcatuna.
Embora a pandemia tenha encerrado portas e tradições para a banda, também lhes ofereceu oportunidades nunca antes ponderadas. Em fevereiro de 2021, os tunos gravaram o seu primeiro videoclipe alusivo ao tema “Serenata de Alcafache”. Horácio Lopes confessa que “foi uma experiência única, o videoclip foi gravado em todas as aldeias da freguesia de Alcafache, demorou um dia e contou com a presença dos tunos e bordadeiras de Tibaldinho”. O tuno de 61 anos, não esconde as boas memórias que tem ao lado dos jovens, que são para ele uma segunda família. “Sinto-me um jovem”, completa.
Atualmente, os membros da Alcatuna de Alcafache preparam-se para o lançamento do seu primeiro CD, no dia 20 de março, após ter sido adiado pela segunda vez. Gravado no Plantasia Music Studios, em Viseu, o CD conta com “7 temas originais, inspirados em pessoas e tradições de Alcafache e um arranjo da marcha de Mangualde”, revela o fundador do grupo musical.
Apesar de, no decorrer da situação pandémica, o Estado ter oferecido apoios ao setor da cultura e a Câmara Municipal de Mangualde ter concorrido para dois projetos no valor de 600 mil euros, o grupo musical de Alcafache não teve qualquer ajuda durante a gravação do CD.
O suporte foi fornecido pela tesouraria do município que, segundo o presidente da Câmara Municipal do concelho, Marco Almeida, “tem vindo a apoiar a Alcatuna assim como a todo o movimento associativo, cultural e desportivo”. É um projeto que contém o sangue, suor e lágrimas de cada tuno, sendo que este “exigiu muito trabalho e dedicação”, confessa António Amaral. “Passámos muitas horas longe da família, mas foi gratificante”, considera.
Palavras do público
O despertar da alegria nos habitantes das freguesias e concelhos que visitam é o que mantém o grupo focado em partilhar a sua música com o povo português e com o resto do mundo. Quem estabeleceu as suas raízes em Alcafache, reconhece o valor e importância no panorama cultural que a banda apresenta. “A Alcatuna é muito importante para a freguesia. É um grupo que anima muito a população e sem ele teríamos uma freguesia mais pobre. Com as atuações existe maior riqueza, há movimento e cultura”, partilha Marta Conceição, formadora e residente em Tibaldinho na freguesia de Alcafache.
Até hoje, o grupo de 15 tunos continua a ser um marco considerado fundamental para a freguesia, tendo proporcionado o seu desenvolvimento e notoriedade. Isto justifica-se pelo facto de “carregar consigo, na insígnia, parte do topónimo de Alcafache e também porque em cada atuação que fazem, dentro ou fora do concelho, têm o cuidado de explicar que projeto é a Alcatuna, a sua origem e a sua “naturalidade””, conta o ex- vereador da cultura.
João Lopes não esconde o orgulho que sente por ter acompanhado os tunos durante 12 anos e ter presenciado, em primeira mão, acontecimentos que impulsionaram o reconhecimento da Alcatuna de Alcafache. “Orgulho-me de os ter acompanhado em momentos muito importantes, de ter contribuído com parte dos recursos que eram disponibilizados ao Pelouro da Cultura, mas sobretudo da minha presença pessoal em projetos que perdurarão nas suas memórias durante muito anos e terão servido para escrever parte importante da sua história, aquela que os seus músicos vão contar aos seus netos daqui a muitos anos”, exprime.
Deixar um legado
A riqueza cultural, agrícola e turística são elementos que definem a freguesia de Alcafache. Desde os Bordados de Tibaldinho, que recriam a natureza da região em pano branco, à Alcatuna de Alcafache, que transmite o amor pelas pessoas e pela freguesia que os acolheu. Para Marco Almeida, “um território sem cultura é um território sem identidade e a Alcatuna, ao longo dos anos, muito tem contribuído para a fomentação dessa marca, que é única no nosso concelho”. O presidente da Câmara Municipal de Mangualde completa dizendo que “a Alcatuna ajuda a projetar Mangualde”.
O legado dos tunos, cada vez mais, é deixado para trás e António Amaral mostra- se descontente com a falta de adesão por parte de um público mais jovem. “Há poucos jovens que queiram integrar neste projeto. Gostávamos muito que este legado não se perdesse no tempo e que os mais jovens se juntassem a nós”, desabafa. Ainda assim, o fundador destaca que a Alcatuna de Alcafache está aberta a novos amantes de música.
Para João Lopes, os trabalhos desenvolvidos pelo grupo musical direcionados a uma comunidade mais jovem são considerados uma “integração sustentada nos limites da razoabilidade, com a imposição de algumas regras para a sua aceitação e manutenção no grupo”.
Embora o legado deste marco cultural possa vir a, eventualmente, conhecer o seu fim, existe sempre quem recorde as notas musicais, as letras e diversão presente em cada dedilhar de guitarra.
De um projeto a ser concretizado nos EUA, que não se cumpriu, nasceu um grupo que, até hoje, transmite os ideais de companheirismo, alegria e união através das suas melodias. Constituído por 15 tunos, a Alcatuna de Alcafache tem deixado a sua marca no país e no mundo. De Portugal, a Espanha e para o resto da Europa, a banda vai mais além do que apenas um grupo de amigos que se junta para cantar, assumindo-se como uma segunda família. Ser da Alcatuna de Alcafache é uma forma de estar na vida.