Um sonho alicerçado em pesadelos
Em dezembro de 2010, o Catar venceu o concurso e foi escolhido para sediar o Mundial 2022. Uma escolha que foi, desde logo, alvo de muitas críticas. Em Doha, as pessoas festejavam pelas ruas. O resto do mundo condenava a decisão.
Por Kevin Santos
Uma decisão que confirmou as suspeitas de muitos amantes do desporto rei: o futebol é total refém dos interesses financeiros dos líderes dos clubes e organizações, agentes, etc. Porquê? Para além de ser impossível realizar o Mundial durante o verão (como acontece normalmente), devido às elevadas temperaturas que se fazem sentir no país, o projeto envolve um enorme investimento injustificado. Foram construídos 7 estádios e o Estádio Khalifa foi requalificado. Entre os estádios construídos, encontra-se o Estádio Lusail, situado na cidade homónima. Uma cidade que está em construção, uma cidade que simplesmente não existia. Para além dos estádios (e da cidade…), foram construídas outras infraestruturas como estradas, um aeroporto, hotéis, entre outras.
Depois de mais de 10 anos, o Catar bate recordes. 90% das estruturas necessárias para o evento estão prontas. Apesar dos atrasos impostos pela covid-19, cinco dos oito estádios já foram concluídos e inaugurados e os restantes encontram-se em fase de finalização. Nunca uma sede de Mundial conseguiu atingir este nível de desenvolvimento das infraestruturas a dois anos do evento. Mas a que custo?
Este é o lado (ainda mais) negro do Mundial 2022. Uma investigação do jornal britânico “The Guardian” expôs números trágicos. Desde dezembro de 2010, nas obras de preparação para o Mundial 2022, faleceram 12 trabalhadores migrantes, por semana! São mais de 6500 de mortes (o número poderá ser muito superior). Trabalhadores da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh, Sri Lanka, entre outros países. Se a decisão foi contestada no início, agora está confirmada uma das maiores manchas na história do futebol.
Estes números, na sua maioria relatados como mortes resultantes de “causas naturais”, surgem depois de vários testemunhos de “abusos sistemáticos e trabalho forçado”. Dos 132 trabalhadores entrevistados pela Amnistia Internacional, em 2016, todos admitiram sofrer abusos e ameaças. Já em março de 2020, depois da chegada da covid-19, muitos trabalhadores viram-se presos nos locais de trabalho, sem condições sanitárias e a possibilidade de se precaver quanto ao contágio da doença.
Estes acontecimentos recorrentes são uma afronta a todos os direitos humanos, a todos os direitos dos trabalhadores que vivem pesadelos diários. Tudo para que, em 2022, jogadores e adeptos vivam os seus sonhos. Como é possível a FIFA permitir tudo isto? Como, após a exposição destes números trágicos, podem assegurar a proteção dos direitos humanos/dos trabalhadores?
Que a escolha do Catar ia ficar marcada como a pior de sempre, nunca tive dúvidas. Mas nunca poderia imaginar o quão negro seria este projeto. Acredito que todas as federações têm uma palavra a dizer, uma vez que a FIFA está a falhar gravemente, desde o início. As federações e os jogadores deviam bater o pé. Vestir camisolas antes dos jogos de qualificação não chega, o Mundial 2022 devia ser alvo de boicote. E aquele país tem de ser responsabilizado, os responsáveis têm de ser julgados. Como podem 6500 mortes passar impunes?
Será justo jogar futebol sobre o sangue derramado? Será justo sonhar onde tantos viveram pesadelos?