O vento mudou… e o amor também
Esqueçam-se os bailes de verão e as serenatas à janela. Perdeu-se o beijo roubado num recanto escondido e o medo de ser castigado pelo pai severo. O “Amor nos Tempos de Cólera” deu lugar ao amor como o conhecemos hoje, no qual a forma de encarar asrelações amorosas tem vindo a alterar os modos de união com a nossa cara-metade e todo o cenário da construção de uma vida a dois.
Nos anos 60, os Beatles fizeram questão de deixar bem claro que tudo o que precisamos é… amor: o sentimento soberano que inspirou gerações de poetas e escritores, músicos e cineastas.
Amar é, desde sempre, uma montanha-russa de emoções que aceitamos pela satisfação de ter ao nosso lado a pessoa com quem desejamos partilhar cada momento. Mas será que as fórmulas utilizadas para chegar à tal são as mesmas de há décadas atrás?
Numa sociedade em que, para muitos, se alimenta a ilusão de que estamos mais conectados do que nunca, o isolamento e a solidão continuam a aumentar, principalmente entre solteiros. A necessidade de uma presença afetiva, a par da liberalização dos novos métodos de procura do amor, fazem com que encontra-lo já não seja deixado ao acaso. Os que se sentem sozinhos cada vez mais tomam as rédeas do destino e por sua iniciativa, buscam a felicidade com outro alguém.
É este um novo paradigma de formação dos laços afetivos ou, pelo contrário, de fragilização e banalização das relações que vivemos?
Amor, para que te quero?
Explicar algo tão complexo como é o amor pode parecer difícil e até dispensável. No entanto, é importante entender esta necessidade de partilha que tão bem carateriza o ser humano.
Numa ótica mais pessimista e racional, as relações amorosas são consideradas uma ilusão criada pelo desejo sexual e pela necessidade natural de procriação. Mas não queremos acreditar em algo assim. Então, porquê amar? “A angústia da solidão”: foi esta a primeira ideia que ocorreu a Leandra Cordeiro quando questionada acerca das motivações por detrás do amor. Licenciada em Psicologia, com uma especialização na vertente Clínica e da Saúde, acredita que o afeto é tão importante como qualquer outra necessidade básica. “O amor e a qualidade das relações afetivas garantem a estrutura e o equilíbrio psíquico. É assim com os primeiros vínculos quando somos pequeninos e depois, quando crescemos continua a ser fundamental reconhecermo-nos nos olhos dos outros, amarmos e sermos amados.”, explica.
De facto, o amor tem sido entendido como um processo de autodescoberta em conjunto com o outro, no qual o apoio mútuo desempenha um papel fundamental. Amar é um ato de fuga ao tal isolamento que nos parece intrínseco. Derrubamos muros que fomos construindo ao longo do tempo para nos protegermos do que nos rodeia. Esse medo do exterior desaparece e as barreiras quebram-se. A nossa “carapaça” fria e vazia passa a ter lugar para mais uma pessoa. E assim, sem grandes comos nem porquês, somos felizes.
“Uma relação nunca é fácil. Muitas vezes é o encontro imperfeito de muitas fragilidades, de duas histórias que sendo mais ou menos difíceis, envolverá sempre cedências, ajustamentos, encontros de expectativas.”, afirma Leandra Cordeiro. Esta é uma definição transversal que permanece na base de todas as relações afetivas. Porém, outras coisas mudaram.
“Vocês correspondem!”
E se o amor estivesse ao alcance da nossa mão?
Luís tem 24 anos. Em dezembro do ano passado conheceu a sua atual companheira através do Tinder, uma aplicação de encontros online. Estão juntos e felizes há quatro meses: “Fiquei curioso com a foto inicial, que não era dela, e com as referências no perfil. Queria saber o
Criado em 2012, o Tinder é a aplicação de encontros mais bem-sucedida do momento.
que fazia, de que música gostava, que filmes via, e não queria que fosse mais uma no meio da manada.”
No entanto, confessa que depois de terminar uma relação de três anos, não era uma namorada que procurava quando instalou a aplicação: «Apenas olhei para essas pessoas como potenciais “one-night stands”. Apesar de ter alguma esperança, não acreditava que iria ter uma relação mais séria com alguém aí – não só porque acho que muita gente na plataforma não as procura mas também por uma certa desilusão com o amor.».
Nos últimos anos, as aplicações de encontros invadiram os smartphones. Em menos de cinco minutos, são dezenas as que disponibilizam um autêntico catálogo de pessoas interessadas numa mera conversa, num café, num caso de uma noite ou até num compromisso mais sério.
No caso do Tinder, as intenções variam de acordo com a “correspondência”. É esta a expressão utilizada quando duas pessoas se encontram na aplicação e “gostam” uma da outra. Só assim podem entrar em contacto e iniciar uma conversa.
Utilizando informações básicas do perfil do Facebook, incluindo as fotos e os gostos em páginas, o Tinder cria um perfil para cada utilizador, que ficará visível para outros se se incluir nos critérios que escolheram: sexo, idade e localização (distância em quilómetros).
“É possível, com um mínimo de atenção, perceber vários traços das pessoas a partir dos seus perfis. Se tem muitas ou poucas fotos, sozinha ou acompanhada, no meio da natureza, em bares ou em casa. Se não tem descrição e, a ter, se dá primazia a traços psicológicos ou físicos.”, defende Luís.
O jovem acredita que sem o Tinder ainda existiria uma possibilidade remota de se cruzar com a atual parceira no dia-a-dia, por não serem de longe. Mas a relação, muito provavelmente, não se teria desenvolvido: “Acho que teríamos chamado a atenção um do outro, mas não de uma forma suficientemente forte para ultrapassar as nossas reservas e, vá, um certo desprezo por quase toda a gente.”, diz, sorrindo.
Desde 2012, ano do seu lançamento, o Tinder conta com 100 milhões de usuários inscritos em 196 países. A maioria tem entre 18 e 24 anos. 54% estão solteiros.
Longe da norma… perto do amor?
Marco assumiu a homossexualidade aos 17 anos, dez anos depois de ter sido diagnosticado com depressão: um quadro diferente que faz com que as aplicações sejam das primeiras hipóteses a considerar para ultrapassar certas barreiras.
Apesar de já utilizar fóruns online como tentativa de encontrar um parceiro, Marco só entrou no mundo das aplicações aos 22 anos. “Fui motivado pelos meus amigos. Já conhecia praticamente todas as pessoas com a minha orientação no meu
contexto imediato e não havia novas pessoas a aparecer”, explica. Para além do Tinder, é também utilizador do Grindr, destinado especificamente a encontros homossexuais numa vertente mais ocasional. Apesar de semelhantes, no Grindr a opção de enviar uma mensagem está disponível imediatamente, mesmo que a outra parte não esteja interessada.
Tendo em conta as limitações, não acredita que as vias tradicionais sejam a melhor opção para quem procura alguém do mesmo sexo, dadas as probabilidades e os riscos ainda associados ao preconceito: “É expectável que toda a gente em nosso redor seja heterossexual. Não é expectável, a não ser que se esteja num espaço dedicado a isso, que alguém seja homossexual. E dado que muita gente ainda não se sente confortável, pode tornar-se perigoso tentar perguntar a alguém sobre a sua orientação.”.
A este cenário juntam-se as preferências e expetativas em relação ao outro. Na vida real, perceber a compatibilidade de interesses entre duas pessoas pode não ser tão imediato. Nas aplicações, uma rápida descrição no perfil já a denuncia. É que “Não havendo quem corresponda aos nossos critérios pessoais, não interessa se se está rodeado de cem pessoas que partilhem da nossa orientação, ou de apenas uma.”, explica Marco.
Luís tem ansiedade social. Também esse foi um dos motivos que o levou a escolher o Tinder. “É muito mais confortável estar sentado no sofá ou deitado na cama a escolher potenciais parceiros. A rejeição é trocada por uma ausência de resposta, que dói muito menos.”, afirma.
Ainda assim, o processo de conhecer alguém pela Internet continua a não ser um mar de rosas para quem se sente constantemente inadequado: “O momento em que fazes um “match” com alguém – que não conheces sequer de lado nenhum – traz sempre uma certa ansiedade. Olha, é o equivalente virtual a uma troca de olhares flagrante entre pessoas na rua, se calhar. Depois há na mesma aquela insegurança e artificialidade inicial da conversa.”.
Para Marco, a falta de um companheiro agrava ainda mais os efeitos da depressão: “Se há coisa que uma pessoa deprimida sente, geralmente, é inadequação e falta de apoio. A falta de um companheiro auxilia a sensação de que não temos valor.” Quando todos à sua volta parecem ter “alguém especial”, o desajustamento cresce, ao contrário da autoestima: “Acaba por ser uma pescadinha de rabo na boca: não temos valor porque não temos ninguém, e não temos ninguém porque não temos valor.”, conta.
A cultura do efémero
“Tenho algum receio de que, com a revolução tecnológica, nos tenhamos tornado muito automatizados. Menos emocionais.”, defende Leandra Cordeiro. “É necessariamente o outro virtual, que na maioria das vezes promove a desresponsabilização e o descomprometimento, o que pode ser inicialmente apelativo mas está longe de uma relação.”, acrescenta a psicóloga. Será caso para dizer que a magia do amor tradicional desapareceu?
É certo que encontrar companhia está agora mais acessível do que nunca. Mas há várias questões que se colocam no âmbito das relações amorosas atuais. Num contexto dominado pelas aplicações que potenciam novos laços, a par das já conhecidas redes sociais, é impossível não falar nos efeitos que decorrem nas relações.
“As pessoas deixaram de viver e abraçar a sexualidade com o relacionamento afetivo e talvez aí se tenham vindo a divorciar aos bocadinhos. Todos os dias. Delas próprias e dos outros, obrigatoriamente.”, confessa a psicóloga. A verdade é que, mais do que nunca, presenciamos uma certa banalização do efémero, que se faz sentir na enorme procura por casos de curta duração em vez dos típicos compromissos.
Marco acredita que “os homens são, por natureza, mais promíscuos.”. Com alguma confiança construída entre as duas partes, a probabilidade de um encontro da natureza sexual ocorrer entre dois homens é muito maior. Infelizmente, sente que “as aplicações acabam por alienar muitas pessoas” que, como ele, procuram relações sérias.
E a proliferação das aplicações contribui para esta mudança de comportamentos? Luís pensa que a situação é inversa: “Essa vontade tem que existir antes de tudo. Afinal de contas, a app foi criada para responder a uma necessidade e se a prioridade é um encontro ocasional…”.
Para além disso, em camadas mais jovens, as mentalidades já não remetem tão imediatamente para a necessidade de um compromisso, muito menos para a instituição que é o casamento. “Acho que muito disso vem de uma mudança cultural na qual, pelo menos na classe média – alta, se entende que um indivíduo até aos 30 anos ainda pode divagar, experimentar diferentes lugares, relações, sensações, etc.”, afirma Luís. Leandra concorda: “Hoje a autenticidade de que as paixões não duram uma vida inteira e que nem sempre se é feliz para o resto da vida, dá liberdade às pessoas de a qualquer momento poderem recomeçar (a viver). E isso, desde que seja vivido com conta, peso e medida é bom!”.
Bem-me-quer… já não te quero
Quando a diversificação dos métodos de procura do amor parece solucionar um problema, eis que outros surgem. É que encontrar alguém que corresponda aos nossos desejos e expetativas parece fácil. Será que manter uma relação amorosa viva atualmente também o é? Para Leandra Cordeiro, este é um dos maiores desafios:
“Realizar o tal encontro diariamente. Resolver conflitos. Comunicar com o outro. Esses talvez sejam os principais problemas.”.
Na era de exposição da vida privada, a ilusão de que alguém melhor está ao simples alcance de um clique aumenta, ao contrário do investimento num compromisso duradouro. “À medida que as pessoas vão colecionando relacionamentos vão-se sentindo cada vez mais sozinhas.”, afirma a psicóloga. Mas essa sucessão de tentativas é, hoje em dia, uma constante. Porque o vizinho do lado parece mais feliz do que eu. Ou porque há, no contexto virtual, um mar de solteiros à espera de ser navegado. Luís concorda e refere que “a internet pode promover essa ideia de que há tanta gente disponível que podemos ser “esquisitos” e descartar alguém por um pormenor insignificante.”.
Mas o amor não se resume a isto. Apesar de tudo, “As pessoas que se mantêm juntas não gostam mais ou menos. Não são mais ou menos bonitas. As pessoas que se mantêm juntas resolvem problemas.”, diz Leandra.
Quando as cartas de amor não eram ridículas
Agora com 64 anos, Delfim conta a sua história de amor entre risos de orgulho e uma certa vergonha. Ivone, com 60, abana a cabeça em sinal de reprovação. Foi o acaso quem os juntou. Na tropa, os amigos sortearam três cartas endereçadas a mulheres diferentes, mas com o mesmo conteúdo: um pedido de namoro. Foi a de Ivone, na altura sua vizinha, que retirou da mão do colega. E foi com ela que, passados quatro anos, casou.
“Fui grávida de dois meses para o casamento e os meus pais nunca souberam de nada”, confessa. De igual forma, o pai de Ivone teve de dar autorização para que a cerimónia se pudesse realizar, mas essa era a única forma de poderem estar juntos e viverem as suas vidas felizes: “Durante o namoro era muito complicado. O amor era quase proibido, porque a filha era do pai e não de outro homem. Mas era verdadeiro, mais leal do que hoje em dia.”, diz Delfim.
Quando questionados acerca do amor na atualidade, reconhecem imediatamente as diferenças relativamente ao passado: “Era inconcebível uma mulher viver com um homem sem serem casados. Da mesma forma que uma separação era muito mal vista. Se algum deles estivesse infeliz, era assim que tinha de viver, mesmo que não quisesse.”, conta Ivone.
O marido acena afirmativamente e acrescenta que no seu tempo “dava-se mais valor ao que se conseguia conquistar” e acredita que nos dias que correm isto já não acontece: “À mais pequena desavença, desistir é logo a primeira opção. Já não há paciência para lutar, para tornar as coisas melhores. E num ciclo vicioso, salta-se de namoro em namoro, como se fosse um jogo.”, acrescenta Delfim.
A falta de liberdade da altura ainda dificulta a interiorização de novos hábitos dos tempos que correm. O amor online é um deles. Nenhum dos elementos do casal coloca a possibilidade e o “risco” de ter conhecido alguém por este meio. Apesar de reconhecerem as vantagens das novas tecnologias, não imaginam que nelas haja lugar para um compromisso verdadeiro como os daquela altura: “Não vejo o amor dessa maneira. Perde-se tudo o que tínhamos de bom antigamente… perdem-se histórias para contar e tudo o que o amor tem de natural.”, defende Ivone.
O que esperar do amor?
As representações do amor já não são as mesmas. Quer seja pelas mutações sociais decorrentes da liberalização sexual (e da liberdade no geral), ou pela revolução tecnológica, o futuro do amor como o conhecemos é incerto.
Experimentar é cada vez mais uma opção para quem quer disfrutar do agora, sem preocupações. Mas a procura por uma companhia constante não se desvaneceu: só mudou de forma. E o resto? “Se estás a escolher alguém a dedo num ambiente controlado, esse momento pode não ter muita espontaneidade.”, afirma Luís, “Mas o que se segue ainda é uma interação entre duas pessoas, que se podem odiar, ser indiferentes… ou adorarem-se.”
É que segundo Leandra Cordeiro, o essencial na construção de uma relação não é aquilo que corporiza o primeiro encontro. O que realmente importa é a capacidade de transformar a reunião numa relação séria e importante para ambos. “E essa, dê o mundo as voltas que der, envolverá sempre os olhos nos olhos, o toque de pele e não o touch screen.”, diz a psicóloga.
E a verdade é que, apesar das formas como nos conhecemos se terem alterado, ninguém quer abrir mão destes pequenos, mas grandes pormenores. Ninguém quer abrir mão do amor.
Ana Rita Cabral
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