O “ultra desafio” dos preparativos de mais uma edição da queima e rebentamento do Judas
Por: Luís Mendes (aluno 1º ano de Comunicação Social)
Na semana que antecede a Queima e Rebentamento do Judas, em Tondela, José Rui Henriques, Presidente da ACERT (Associação Cultural e Recreativa de Tondela), em entrevista ao #daComunicação, conta um pouco da tradição e história herdada dos Carolas. As expectativas pessoais e o que é preparar um espetáculo constituído maioritariamente por jovens amadores. José Rui fala sobre o tema base da edição de 2024, que decorre dia 30 de março às 23h, e deixa uma mensagem sobre o quão desafiante é coordenar, ou delegar, como refere, mais um “Judas”.
Consegue explicar a quem não conhece a Queima e Rebentamento do Judas, o que é e como acontece?
Portanto, primeiro falando um pouco da história do Judas, a Queima é realizada já há muitos, muitos anos antes da ACERT ter recebido o testemunho dos Carolas que o faziam. Era muito distinto do que é hoje, era um pau de madeira vertical, que tinha um rolé, e depois um cone feito de madeira, que era revestido de papel de seda ou pano muito fininho, e depois tinha uma cabeça que a maior parte das vezes era feita duma bola de pano, que era envolvida por uma meia de vidro ou uma meia de lã. Normalmente acontecia, à frente da igreja, ou à frente daquele café Vitória, e após a missa do sábado de Aleluia, as pessoas, uns saíam da missa, outras que não iam à missa faziam um círculo à volta desse boneco, que assim se pode chamar, desse Judas, e aguardavam pelo seu rebentamento. O Judas demorava três, quatro minutos.
Como os Carolas, entretanto, já estavam velhotes, corria-se o risco de não haver Judas num determinado ano. Portanto, nós fomos pegar na tradição, e essas pessoas, as que ainda tinham feito o Judas, passaram-nos a informação de como é que ele era feito. E nós, penso que nos três primeiros anos, ainda fizemos com essa técnica, acrescentando-lhe depois fogo de artifício e fogo preso, passando a tradição para o atual jardim, à frente do tribunal e já lhe introduzimos alguns elementos distintos.
Depois, a evolução dá-se, porque a ACERT defende a ligação entre tradição e modernidade e a sua própria natureza, ou seja, de ter o grupo de teatro, o Trigo Limpo e promover espetáculos musicais, etc. levou a que nós pensássemos em enriquecer mais aquela tradição popular e começámos gradualmente a criar elementos que já dessem um tempo de espetáculo, alguma coisa que surpreendesse, que inovasse a tradição e começámos a criar mais e mais músicas. O primeiro Judas com essas características teve lugar no campo de futebol (Estádio João Cardoso, Tondela) quando ainda era pelado e com apenas um músico. Já havia alguma crítica social que era feita e que o culpado era o Judas, portanto levámos a que a condenação do Judas tivesse associado sempre acusações de males que afetavam o mundo tendo sempre a preocupação da crítica social desde as coisas nacionais locais e mundiais.
Este processo foi evoluindo para aquilo que é hoje, foi ganhando sempre desde a primeira edição que fizemos com esta natureza, envolvendo os associados da ACERT, que se queriam associar ao espetáculo e esse número de pessoas foi-se alargando. É um espetáculo que pode chamar-se “todas as artes na mesma arte”, portanto o espetáculo não é só teatral, é musical é também um vivo muito da cenografia da construção de um Judas gigante e passou a ter também aquilo que se pode chamar de uma narrativa, uma dramaturgia, mantendo-se fiel a um elemento: as acusações e o rebentamento, isto é aquilo que perdura do contar de uma história que procuramos que todos os anos seja distinta, uma história que procura ser simbólica e metafórica, de modo a que o público também tenha que encontrar o fio da história, não apresentando tudo de mão beijada, mas permitindo inclusive várias leituras daquilo que está a ser apresentado.
Quais são as suas expectativas para a Queima e Rebentamento do Judas deste ano?
Julgo que o Judas tem uma particularidade. Tem o lado visível que é aquele que acontece no sábado e a que o público assiste, e tem o lado que não é visível, que é o processo, que ao longo de uma semana acontece em vários setores e tarefas em que este grupo de pessoas se envolve para dar o seu melhor e o empenho em trabalhar com outras pessoas, umas que conhecem outras que não conhecem.
Hoje já tem a particularidade de vir a Tondela muita gente fora que não é só da comunidade, jovens e não só que trabalham ao longo de uma semana com o objetivo comum. Existe uma relação de entreajuda de respeito mútuo, um sentimento comum que une estas pessoas, um sentimento de partilha, de paixão não só pela vivência em comum, mas por construir algo que depois se destrói. O Judas tem esta característica de “exaltação”, de ter um sentimento de exorcizar os males que nos perseguem e aquelas chamas, aquele deitar fogo quando surge. Não só os participantes não ficam com nenhuma pena daquilo que esteja a arder, aquilo que estiveram a construir porque sabem que aquele arder é um arder que o público precisa, e também os que estão a construir precisam porque ali está depositado os males que nos atormentam.
No Judas não há pensamentos de: quem são os melhores; quem é o melhor a fazer isto; quem é predestinado para aquilo; quem manda. Coordena-se e participa-se sentindo as pessoas no mesmo barco e daí este encanto, por exemplo a que os finalistas façam a sua viagem de finalistas em datas diferentes da data do Judas e também que um conjunto de pessoas que já vem de fora guarde as suas férias, que alguns venham com os seus colegas da universidade, famílias que já viram o espetáculo e perguntam-nos como é que os filhos podem vir participar.
Neste momento julgo que o processo é tão ou mais importante do que o espetáculo.
É sabido que, o espetáculo tem a mesma base de sempre, mas todos os anos apresenta uma dramaturgia e composição musical diferente, o que está a ser preparado este ano?
Este ano tem um elemento que é conhecido de todos, mesmo que o não digamos está subjacente quase à própria matriz da ACERT, que se criou em 1976 e sempre se afirmou como filha do 25 de abril, porque resulta de um grupo de jovens que em 1976 optou por fazer um grupo de teatro para manifestarem o seu agrado pela mudança que estava a acontecer no país. O Trigo Limpo não é mais que isso, não era para ser um grupo de teatro profissional ou nada disso, era uma forma de estarmos juntos e festejar aquilo que o país tinha de novo: a liberdade. Fundamentalmente a liberdade de expressão, podermos dizer o que nos ia na alma sem sermos presos, nenhum de nós era politizado, no tempo da ditadura eu também era como os outros, não tinha conhecimento sequer de que aquilo era uma ditadura. E este grupo de jovens disse, “É este o país que eu quero construir e é para isto que eu quero dar a minha contribuição” escolhemos dá-la fazendo teatro e retratando no teatro exatamente essa alegria de estar a viver num país livre.
Há um tema que que é incontornável na dramaturgia do Judas, o 25 de abril.
No ano passado foi batido o recorde de participantes no espetáculo, quantos participantes estão envolvidos este ano?
O Judas é feito por 350 participantes. 50 músicos em palco e depois 300 participantes. O Judas também tem uma particularidade, não só a música ou a dramaturgia é feita de novo como também os figurinos, há uma equipa de figurinos que está a trabalhar nesse sentido, há uma equipa de comunicação que diariamente faz conteúdos para, por um lado, retratar e para que as pessoas que estão a trabalhar se revejam naquilo, como também nos que estão de fora irem tendo sinais do que se vai passando. É uma vasta equipa a que faz este milagre coletivo, portanto todos estes setores fazem mexer este e é a entreajuda em prol do sonho comum que constrói o espetáculo.
Como é que se coordena um espetáculo desta dimensão, em que praticamente todos os participantes são jovens e inexperientes? É desafiante?
É ultra desafiante. Eu acho que o grande segredo da coordenação é delegar. É conseguir transmitir aos outros uma ideia de modo que os outros contribuam para enriquecer e que se sintam também portadores de inovação, de sugestões, de formas de fazer. E quem coordena um trabalho, seja um maestro de uma orquestra, seja um encenador de um espetáculo, seja um coreógrafo, é alguém que tem de ter a perceção da importância do outro. E, portanto, não ser o dono da bola, se assim se pode chamar, não ser o dono da ideia, mas aquele que transmite aos outros a paixão que tem de modo que a ideia seja apropriada pelos demais. Coordenar é isso. Outra coisa seria aplicar uma regra. E neste trabalho não há aplicação de regras. Tem de ser aberto para com o outro. Tem de passar-se também ao outro que é um ser igual. E que, como tal, necessita da colaboração de todos, do respeito mútuo, da capacidade de constituir um grupo homogéneo.
Um coordenador tem de ter sempre uma ideia de que vai aprender e nunca de que vai só ensinar. Porque isso deixa de ser coordenador e passa a ser um patrão ou um autoritário ou uma coisa assim. E isto não se faz nesse sentido. É uma pessoa sempre com a cabeça muito aberta com atenção ao outro e aprender. E depois é a soma dos talentos. Não é preciso ter experiência para participar no Judas. E digo mais, ainda que seja uma opinião pessoal, que alguma inexperiência permite criar muitas vezes coisas com muito mais genuinidade e espontaneidade. Quando nós fazemos espetáculos de teatro de rua, muitas vezes aquilo que mais me agrada é que um espectador me comunique no final que gostou de A ou B, que estão em grupo. “Ah, havia lá uma atriz com uma cara muito expressiva e tal. Quem é?” e eu pergunto. “Quem é?” e respondem-me “Aquela senhora ali” e aquela senhora ali está a fazer teatro pela primeira vez, porque nestes espetáculos coletivos não ter parâmetros de representação dá muito mais liberdade para se ser espontâneo e para se ser genuíno. Para participar no Judas, naturalmente, com os conhecimentos que se tem, em termos teatrais ou em termos musicais, é importante, mas, estou convencido que seria um resultado totalmente distinto se fossem só profissionais, quer dizer, tirava-lhe autenticidade, tirava-lhe alguma genuinidade e tirava-lhe esta particularidade de encontro, onde pode estar um ator profissional de um determinado grupo, mas está a fazer mesmo as coisas que o outro que não tem experiência. Então, se tem mais conhecimento, partilhe com o outro.
Todos os anos entram mais pessoas novas, mas vão persistindo aqueles que já fizeram outras edições, então já há quase uma osmose. Eu lembro-me do meu filho, que aos 14 anos, quando soprava as velas no aniversário, dizia, “Já só faltam dois!” (anos para participar).
Existe uma expectativa, não é de fazerem o Judas, nem de se apresentar ao público, há uma expectativa de já poder entrar com os amigos, durante um período.
Eu entendo, que isto é uma escola, porque uma escola, para mim, é um sítio onde se trocam saberes e onde se aprende. E isto é uma escola, a esse nível. Agora, não é uma escola tão rígida sob o ponto de vista da disciplina e, principalmente não lhe é dado um valor no final. Não há os que tiveram mais valores do que outros, ou seja, não há competição a esse nível. Há uma noção de igualdade, no processo de aprendizagem e o lazer, muitas vezes, é conhecimento. E eu tenho, pela minha experiência, quando o conhecimento, ou o professor, ou o tal coordenador, conseguem associar o lazer à transmissão do conhecimento, isso, para o aluno, é uma coisa muito agradável, quando é muito segmentado, isso já não é tão agradável. Então, aqui é uma escola da partilha e não uma escola de competição e julgo que, cada vez mais, os jovens necessitam disso necessitam de partilha, de não viverem numa sociedade de competição, mas mais numa sociedade de “ser generoso” com o outro, de mostrar gratidão por uma atitude, por uma forma de estar, etc. e esses valores. Quem sou eu para dizer isto, mas pelo menos, sinto-me durante esta semana como que bafejado pela sorte porque posso viver isso.