“Ainda há clientes fiéis”. Que Viso Eu? e a fuga a um artesanato adormecido
Desde a sua criação, em 2015, a Que Viso Eu? tem sido a cara da tradição das terras beirãs, que dá a qualquer guloso a oportunidade de se deliciar com as receitas das duas irmãs que dão palco a esta mercearia. Em terras de Viriato, é uma loja de venda de produtos artesanais e situa-se na Rua Nunes de Carvalho, junto à Porta do Soar. Desde o queijo da serra aos vinhos do Dão, Cristina e Inês Pessanha mostram o que de melhor produzem, para uma comunidade onde “ainda há clientes fiéis”.
Reportagem por Patrícia Lourenço
Com a ajuda da irmã Cristina, o dia a dia da viseense Inês Pessanha passa pelo negócio de família. As raízes da empresa nasceram com o bisavô e desenvolveram-se nas mãos da mãe das proprietárias, Teresa Cabral. Foi em 1982, quando abandonou a capital e começou a residir em Viseu, que a mãe de Cristina e Inês Pessanha decidiu “formar-se”, naquele que “foi dos primeiros cursos de jovens agricultores”. Com um projeto de “reestruturação da quinta” deixada pelo pai, Teresa Cabral reabriu as portas da herdade da família, a Quinta da Igreja, em Povolide, que se mantém até aos dias de hoje.
“Produtora de matérias artesanais”, Inês Pessanha confessa que os habitantes “na generalidade já não ligam tanto aos produtos de fabrico próprio”, e o padrão de clientes “não é de gente nova”. O queijo da serra, o requeijão, os frutos secos, os legumes, os vinhos do Dão e as outras opções que a loja dispõe, são a montra de sucesso da Que Viso Eu?, que está a ser “mais reconhecida” com os “seguidores novos” nas redes sociais.
O projeto que levou à independência
A celebrar 7 anos no próximo mês de fevereiro, a Que Viso eu? começou “apenas como uma experiência” de vender “os rebentos que a quinta dava” para a “altura do Natal”, em 2014, relembra Cristina Pessanha. No entanto, com uma “grande coragem”, associaram-se à medida, o “Comércio Investe”, apoiado pelo IAPMEI, e financiada pelo Ministério da Economia, para dar continuidade “ao formato diferente e independente” que a loja estava a ganhar.
Inicialmente, foi realizado um estudo de mercado com “uma prospeção de vendas” do que seria previsível para 5 anos obrigatórios de “estabelecimento ativo”, explica a empresária. Ao fim de pouco tempo, e sem Inês Pessanha “esperar”, a loja conseguiu “as vendas previstas” e, ainda, “atingiu os valores que eram prognosticados no estudo”.
No século IX, pelo olhar dos guerreiros cristãos que perguntavam “Que viso (vejo) eu?” terá surgido o nome da cidade de Viseu. A genealogia da cidade é o nome da loja de artesanato. Para Inês Pessanha, “a resposta a esta pergunta não é difícil de encontrar”, pois a loja “tornou-se num espaço que se dedica a promover o que de melhor se encontra na cidade”.
Das vinhas aos queijos artesanais
A propriedade da família, a Quinta da Igreja, era abastada de vinhas que, inicialmente, fariam parte do projeto do curso profissional da mãe das empresárias. No entanto, os terrenos “não eram adequados às maquinarias atuais”, os caminhos de acesso eram “estreitos” e “não passavam tratores”, para além de que, a manutenção era “muito elevada”. Com a certeza de que “não teria possibilidades económicas”, Teresa Cabral, mudou de rumo e colocou mãos à obra nas árvores aveleiras que componham grande parte da quinta.
Hoje em dia, os vinhos “não são produzidos” pelas irmãs, mas, como salienta Inês Pessanha, procuram “vinhos de pequenos produtores” com o objetivo de “apoiar o microcomércio” e diferenciarem-se das “grandes garrafeiras”, ao vender vinho “exclusivo” na loja. Com vinhos da região, referências do Alentejo e outras do Dão e do Douro, a Que Viso Eu?, constitui uma vasta variedade de vinhos para todos os gostos.
Quanto ao projeto das árvores aveleiras, estas “reavivaram” a produção na quinta e contribuíram para a “grande base” do estabelecimento artesanal. Na evolução da quinta, surgiram novos animais, como vacas, e mais tarde ovelhas, que deram origem à atual queijaria. Com a ideia de “transformar as matérias-primas dadas pelos animais”, a queijaria, “entrou em funcionamento” em 2009, com “120 cabeças” que proporcionavam leite para vender “em fábricas de queijo industrial da Serra da Estrela”, relembra Inês Pessanha. Contudo, no ano de 2016, um ano após a abertura da loja que “requeria muita atenção”, e com o “envelhecimento” dos pais de Cristina e Inês Pessanha, o rebanho foi vendido e o leite começou a depender de “um produtor” que, diariamente, trabalha com 20 mil litros de leite para a confeção dos queijos particulares do estabelecimento.
Apesar de a queijaria “ser artesanal” e com muita “utilização de mão de obra”, também a “maquinaria”, veio trazer “maior produção de queijo”, mesmo este sendo confecionado a uma “escala menor” da generalidade. Na horta, Teresa Cabral “planta, trata e colhe”, os legumes e as frutas que nascem da “terra fresquinha”, “sem qualquer tipo de químico”, e que, no dia a seguir, são vendidos na Que Viso Eu?.
Sabores que vão além dos tradicionais
“Tudo depende de nós e em termos de recursos humanos, não é fácil”, revela a proprietária que durante as feiras da cidade, sabe o quão “difícil é manter a loja aberta ao mesmo tempo que uma feira decorre”. Com a “pouca presença” nas feiras e nos eventos da cidade, os produtos que têm como, o queijo de ovelha, o queijo de cabra, o queijo amanteigado, o requeijão, as compotas, os legumes, as frutas e as “sopas de produtos orgânicos com um salgado a acompanhar”, são servidos ao almoço no próprio estabelecimento ou pelo serviço de take-away. de forma a “convidar mais gente para o negócio”.
Além dos sabores tradicionais da região, “os rissóis de tinta de choco e berbigão, são os mais distintos dos típicos croquetes e rissóis” na loja das irmãs. Outra das especialidades, são os biscoitos de requeijão, uma iguaria única, produzida pelas proprietárias, assim como, as compotas dos frutos “unicamente criados” na Que Viso Eu?, acrescenta Cristina Pessanha. De “uma forma mais sustentável”, também os clientes “podem trazer o seu tupperware” para levar as “refeições diárias”, de baixo custo económico e “genuinamente portuguesas”. Quanto ao futuro, “quem sabe”, não virá o “queijo com trufa e outros sabores a descobrir”.
“Estamos num nicho de mercado”
O setor artesanal “tem vindo a ser desvalorizado”, e para Inês Pessanha “há muitos fatores que contam para que isso aconteça”, tais como, “fatores globais, do panorama nacional e locais”, que “enfraquecem a receita do comércio tradicional”. Do fator nacional, a proprietária coloca “em primeiro de tudo”, a pandemia Covid-19, que “não há maneira de acabar” e faz com que as “pessoas não saiam de casa para visitarem o comércio local”.
O mesmo problema enfrenta a área do turismo, que “atualmente é muito residual” e não tem “qualquer tipo de expressão,” mas “antes tinha bastante”, para além de que, a Que Viso Eu?, é “virada para clientes que venham de fora”, e que procuram, sobretudo, “produtos bons como os artesanais”.
Para Cristina Pessanha, a sensação de insucesso é a mesma. “O turismo foi muito abaixo” e, antes da pandemia, a “faturação da loja estava a crescer muito”. O típico turista, “senta-se, toma um copo de vinho e pede uma tábua de queijo”, no entanto, “já não acontece essa dinâmica”, o que dita, assim, “o fim do turismo de fim de semana”.
Outro problema de natureza económica está na “falta de apoios pelo Ministério da Agricultura”, que “não dá importância aos pequenos comércios” e à “mão de obra de produtores artesanais”. Na Que Viso Eu?, os queijos “são feitos com leite cru, sem pasteurização” e “não é colocado na casca um líquido para o queijo não gretar” como acontece nas “queijarias das grandes empresas”. Por isso, “qualquer pessoa do setor que olhe para o queijo desta loja, percebe perfeitamente o que está ali”, sem “nada embarretado”, explica Inês Pessanha. Contudo, este processo “pressupõe muito mais trabalho” e só é possível porque as lojistas trabalham “em pequena escala”.
Neste sentido, Inês Pessanha afirma: “estamos num nicho de mercado”, em que “não há grande apoio em Portugal”. No caso do queijo da Serra da Estrela, “este é uma figura de convite”, mas as “fábricas alteram a forma de o produzir, para trabalhar em grande escala” e, “claro”, o Estado “apoia”, uma vez que, “precisa de queijo que seja produzido em grandes quantidades”.
Em Viseu, as lojas artesanais, diferenciam-se pelo “trabalho manual”, que se foi influenciando, “pelo contexto cultural de tradições antigas, como os têxteis, o barro e os instrumentos em madeira”. Contudo, como salienta Inês Pessanha, “para este continuar”, é necessária “uma maior divulgação para algo que é tão bom e importante na região”.
A estagnação de um artesanato que outrora era riqueza
No centro histórico de Viseu encontra-se aquela que já foi a rua mais movimentada da cidade, a Rua Direita. É aqui, que Ana Amaral, comerciante por conta própria da loja Cadopa há mais de 30 anos, observa “cada vez menos o movimento” pela “falta de remodelação”. Com a venda de vestidos de batizado, comunhão, fatos de cerimónias, acessórios e roupa para bebés e crianças, acredita que a sua loja se distingue “porque os artigos cerimoniais não se encontram tão facilmente em centros comerciais comuns”, para além de que, “são produtos nacionais, com muita elaboração de mão de obra”. Mas mesmo com estas vantagens, “as ruas estão a ficar desertas”, “os lucros continuam a diminuir, e o negócio está péssimo com a pandemia a acontecer”.
Sobre o desfalecimento do artesanato, Ana Amaral, considera que o problema está no “envelhecimento dos comerciantes” que têm as “lojas abertas há 40, 50, 60 anos”, assim como a “preferência que os jovens têm pelo Fórum, o Palácio do Gelo e os outros centros comerciais”, que apagaram “o hábito de ir às boutiques tradicionais”. Como solução, a empresária, acredita que pode estar na “remodelação de edifícios”, e na “participação de jovens” que “tragam inovação”, e “invistam no comércio tradicional que Viseu ainda tem para oferecer”.
Do lado de fora da zona histórica da Sé, Fernando Neves, fundador da Retrosaria Neves, afirma que a “tradicionalidade tem tendência em desaparecer” e “só as lojas artesanais que sobreviverem à crise”, são as que “ainda valerá a pena, prosseguirem com a tradição”.
Com a ajuda da esposa, Carla Neves, realizam todo o tipo de arranjos de costura, como “apertar, alargar, coser, tapar buracos e outros serviços”, são “manualmente feitos”, apoiados pelas máquinas de costura que se avistam ao fundo da loja. Desde lãs, fitas, emblemas, botões, tecidos, algodões, a acessórios de roupa e de decoração, a retrosaria, tem uma forte presença nas redes sociais para “promoções e descontos”. Fernando Neves, gostaria de “expandir” o negócio, ao “fazer venda direta online” no Facebook, mas da mesma forma que todos os outros setores, “vender está a ser um exercício muito complicado” perante a pandemia.
Ao longo dos tempos, como testemunhou Inês Pessanha, as várias lojas de comércio artesanal, revolucionaram o urbanismo da cidade-jardim e, ir à zona histórica de Viseu, em que “tradições arcaicas se dão a conhecer”, era “o maior motivo que as pessoas tinham de vir para a rua”. Inicialmente idealizada apenas para fazer a venda de Natal de 2014, a Que Viso Eu? representa, nos dias de hoje, o exemplo real de que o artesanato “continua a ter muito poder”, ainda para mais, quando “a história muito antiga é cultura popular portuguesa, é a história dos lugares e das pessoas que o produzem”.