Há crianças portuguesas que… vivem mergulhadas no digital
Na semana passada, uma reportagem de Paula Sofia Luz no Diário de Notícias provocou grande polémica e criou um debate (ou vários) muito pertinente, relativamente aos hábitos das nossas crianças. Mas será que estamos a discutir o que realmente interessa?
Por Kevin Santos
Os pais têm cada vez menos tempo. As crianças são entregues, cada vez mais, ao digital. A reportagem é, sem dúvida, muito pertinente. Afinal, raras são as pessoas que ainda não confirmaram a existência deste fenómeno. Qual? Pois… é aí que eu queria chegar. Apesar de conseguir concordar com o fenómeno crescente de crianças que falam a variante brasileira do português, não consigo perceber como, direta ou indiretamente, se atribuem responsabilidades a todos os intervenientes, exceto, claro está, aos pais das crianças.
O que quero dizer com isto é que, na minha opinião, a reportagem falha, redondamente, na direção que toma, logo desde início, porque assume os criadores de conteúdo como uma espécie de inimigo dos pais (e o ‘brasileiro’ como um “vício”…). Jaime Pessoa, na referida reportagem, afirma que a sua filha, agora com três anos (!), “chegou lá muito facilmente. (…) quando acaba o vídeo do Panda, aparece logo outro desses, que é muito mais apelativo para os miúdos”. A minha pergunta é: Onde está o Jaime? É que a criança tem três anos e é claro que vai ver o que lhe aparecer à frente! E acredite, há coisas bem mais assustadoras que o ‘brasileiro’.
Este género de posição já não é algo de novo… há bem pouco tempo, debatia-se a pertinência de Squid Game, porque as crianças andavam a assistir a série. A culpa é dos ‘coreanos’, a culpa é da Netflix, a culpa foi de quem criou a Internet… a culpa é sempre dos outros, nunca dos pais. Mas por que raio é que os miúdos têm acesso a uma conta da Netflix? Melhor, como é que conseguem assistir a 9 episódios de uma série, 9(!), sem que os pais se deem por isso? Pois, a culpa é do coreano que se lembrou de criar a série.
O fenómeno a discutir não é, ou não deveria ser, a língua que os miúdos falam, mas a forma como estão a ser abandonados e acabam mergulhados no digital. Afinal, o problema são os youtubers brasileiros ou serão as pessoas que os tornam na única companhia dos seus filhos? Lembro-me de, desde muito novo, consumir conteúdos em inglês, francês e por aí fora. E, apesar de soltar alguns ‘camones’ e ‘mercis’, nunca comecei a falar exclusivamente numa língua/variante. Porquê? Porque tinha com quem falar em português (de Portugal). Podia consumir o que quer que fosse, na língua que fosse, mas, lá em casa, falava-se em português. Lá na escola, falava-se português.
Ou seja, o problema aqui não é o fim da cultura portuguesa, não é um suposto colonialismo inverso/reverso ou o que quer que seja. O único problema que eu vejo é relativo à responsabilidade parental. A situação retratada na reportagem não é mais que uma das consequências do panorama social atual, em que os pais se ilibam, cada vez mais, por vontade própria ou por imposição, da educação dos seus filhos.