Harmonia em pano branco, uma produção tradicional que retrata a natureza em Tibaldinho
Se é Primavera e o sol rompe, elas sentam-se no rebate das suas portas e bordam. No granito da escada, que dá acesso à varanda, juntam-se às duas e três e bordam. Pelo Verão, procuram a frescura de um alpendre ou de uma latada e bordam.
Na sombra de uma oliveira, enquanto outros comem a merenda, bordam.
Pelo Outono, dão uma fugida a ajudar nas vindimas, mas logo recomeçam, serenas, e bordam.
Se é Inverno e o frio aperta, juntam-se à lareira e, quer de dia quer de noite ao serão, bordam.
Bordam tal como as suas mães, e avós, e as mães de suas avós…
Reportagem de Mariana Mendes
A sabedoria popular dos mais antigos moradores de uma terra no centro do país Lusitano, reavive memórias de um pedaço cultural que, até hoje, mantém o seu valor simbólico. O Bordado de Tibaldinho, reconhecido pela harmonia refletida através dos desenhos feitos em pano branco, é considerado um bordado único, pelo seu valor a nível tradicional, mas também pela importância que tem como património cultural e imaterial para o país. Tal como o nome indica, o bordado nasceu em Tibaldinho, no concelho de Mangualde e, ainda hoje, a sabedoria das mães, avós e tias é passada para os rebentos.
Os exemplares mais antigos da produção tradicional têm, aproximadamente, 150 a 200 anos. A popularidade do Bordado de Tibaldinho cresceu no século passado, quando deixou a sua marca em eventos como a exposição comemorativa do I Centenário da Independência do Brasil, em 1922, no Rio de Janeiro, e no IV Congresso Beirão, realizado em Castelo Branco. Anos mais tarde, em 1948, dá-se o aparecimento de escolas técnicas com cursos de formação feminina, onde era incorporado o ensino técnico de bordar, como forma tentar manter a arte viva. Atualmente existem 20 bordadeiras que dão continuidade à tradição, 5 são certificadas e as restantes não são certificadas.
A arte de bordar
De fio de linho na mão, a passar entre a agulha e a fazer cada ponto cuidadosamente, é assim que são passadas as manhãs e as tardes de Cidália Rodrigues, bordadeira e formadora. “A paixão começou aos 6 anos quando eu vi um pano sem nada e abri os buracos para formar os desenhos”, revela a bordadeira. Com a sua “segunda casa” aberta há 32 anos, a variedade de pontos e a inspiração retirada de elementos da natureza característicos de Tibaldinho despertaram o gosto de Cidália Rodrigues pela arte de bordar. Para a formadora, “o que enriquece o bordado mais antigo de Tibaldinho é a variedade de pontos”, tornando-o num “dos mais ricos e mais antigos de Portugal”.
“As peças mais antigas eram todas feitas em linho”, conta Cidália Rodrigues. Mais tarde começam a ser fabricados bordados em algodão, algo considerado uma “porta aberta” para quem não é financeiramente capaz de comprar linho. Apesar da compra e fabricação em algodão ser mais acessível, na opinião de Cidália Rodrigues, o bordado é “mais rico em linho”. Uma tradição que a bordadeira leva consigo até aos dias de hoje.
Preservar a tradição
Partilham-se histórias que contam o nascimento do Bordado de Tibaldinho. Uma delas relata que, a primeira bordadeira contornou com uma agulha e fio de linho o buraco que avistou numa camisa, de modo a evitar a sua inutilização. Depois de ponto, atrás de ponto, dá-se a transformação do primeiro ilhó no centro de uma flor. Com o passar dos anos, a arte de bordar começa a perder a sua essência e, a fim de não deixar a tradição morrer, iniciou-se a certificação dos bordados. Foi um processo demorado que, segundo Nelson Almeida, presidente da Junta de Freguesia de Alcafache, começou em 2012, “com o registo da marca Bordado de Tibaldinho”. Um ano depois, o Município de Mangualde entra em contacto com as entidades autorizadas a certificar. “O processo de certificação resultou de várias reuniões entre a Junta de Freguesia de Alcafache, a Câmara Municipal de Mangualde e várias bordadeiras para tentar perceber o que tínhamos, o que queríamos fazer e como iríamos fazer”, descreve Nelson Almeida.
Em colaboração com a funcionária da autarquia, Fernanda Mendes, o processo de certificação deu mais um passo em frente e, a 27 de dezembro de 2016, foi aprovada a inclusão do Bordado de Tibaldinho no Registo Nacional de Artesanais Tradicionais Certificadas. Em 2017, durante a Feira dos Santos, que acontece anualmente no coração da cidade de Mangualde, as várias peças já eram devidamente identificadas. João Lopes, vereador da cultura na Câmara Municipal de Mangualde, não deixa de enfatizar que “a certificação desta arte é o garante da contribuição para o aparecimento de novas bordadeiras e da preservação de uma tradição que estava a morrer, de forma a que cada pessoa que pretenda iniciar-se nesta arte tenha a certeza de que está a trabalhar num produto que respeita as tradições”.
Negócio mais lento e peças num monte. A nova realidade
Com a atual pandemia a consumir cada vez mais o nosso dia-adia, afastando-nos daquilo que considerávamos “normal”, Cidália Rodrigues confessa que o negócio de venda dos bordados está mais lento. Apesar de não sentir a falta de trabalho, a bordadeira informa que muitas das peças encomendadas para celebrações ainda não foram entregues. “Aquelas peças com datas marcadas estão à espera que as venham buscar”, exprime Cidália Rodrigues. “Trabalhei nelas e estão num monte”, completa.
Porém, a visibilidade dos Bordados de Tibaldinho nunca desapareceu. Ainda com as limitações enfrentadas a nível pandémico, os órgãos de comunicação social continuaram a divulgar a criação dos bordados. A formadora revela que a arte de bordar atravessou o atlântico quando participou num programa para a Tv Globo, no Brasil, onde teve a oportunidade de expor o seu trabalho. O Bordado de Tibaldinho também deixou a sua marca no programa “7 Maravilhas da Cultura Popular”, do canal televisivo RTP 1, em 2020, acabando como finalista do distrito de Viseu.
“Íamos para o Porto, íamos para Lisboa, íamos para todo o lado”. A exposição de uma arte
A difusão e partilha de sabedoria sobre a arte de bordar, é um ato que existe desde os tempos em que ainda não se pensava em ter uma televisão a cores. Libânia Morais Mendes, bordadeira de 80 anos, recorda que, de mão dada com a sua mãe, viajou pelo país para dar a conhecer a tradição tão característica da terra onde nasceu e estabeleceu as suas raízes. “Íamos para o Porto, íamos para Lisboa, íamos para todo o lado”, conta a bordadeira. Os tempos longínquos em que trabalhou nas termas de Alcafache, onde vendia e aproveitava todo o tempo livre para atravessar a agulha pelos panos brancos, são recordações que Libânia Morais Mendes guarda e leva consigo até ao dia do seu último suspiro.
Ainda que o bordado seja reconhecido pelos órgãos de comunicação social, os verdadeiros pilares são as bordadeiras que, apesar de carregarem nas suas mãos uma herança intemporal, começam a desaparecer gradualmente. Com o passar dos dias, anos e estações, a bordadeira sente o desinteresse por parte das pessoas. “Há pessoas que hoje preferem outra coisa”, expõe. É uma arte e uma sabedoria passada de geração em geração, mas a bordadeira partilhou que a indiferença dos mais novos tem vindo a crescer. “A malta nova não tem paciência, é uma pena”, desabafa Libânia Morais Mendes.
Não deixar a tradição morrer
Com o objetivo de não perder o pedaço de cultura que constitui a imagem de marca para Tibaldinho, foram criadas várias iniciativas em acordo com a Câmara Municipal de Mangualde e a Junta de Freguesia de Alcafache. “Para além do processo de certificação, têm sido ministrados diversos cursos de formação que ajudam a preparar novas bordadeiras e temos procedido a algumas campanhas de divulgação”, partilha João Lopes. Em concordância, Nelson Almeida exprime que “tem sido uma preocupação da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal garantir formações anuais para que novas pessoas possam aprender a bordar, o que fomenta que novas bordadeiras possam bordar e comercializar o produto”. Através da criação de selos comprovativos do produto certificado, distribuídos de igual forma por todas as bordadeiras certificadas, a produção de merchandising proporciona uma maior autenticidade na criação de novas peças.
João Lopes não deixa de realçar o valor simbólico que o Bordado de Tibaldinho dispõe. “Devem representar um motivo de orgulho de uma arte que é única, que não existe em nenhum outro território do país, é uma tradição que deve ser preservada e encarada como um possível meio de subsistência que a certificação lhe veio conferir”, reforça. A certificação ofereceu ao Bordado de Tibaldinho um sentido de identidade, anteriormente não identificado, servindo de homenagem às bordadeiras, os alicerces que, durante anos, perpetuaram a produção de um marco característico da sua terra natal.
De um simples pedaço de pano nasce uma tradição com mais de 200 anos de história. A criação de inúmeras peças trabalhosas pode chegar a cerca de 16 horas, e o valor monetário varia entre os 15 e os 7500 euros. Cada ponto, linha e buraco carregam neles elementos característicos e emblemáticos da localidade de Tibaldinho, o seu berço. Quem os compra leva consigo um pedaço de cultura que é passada de geração em geração.