25 anos depois “as gravuras não sabem nadar”
Conhecida como a mais antiga memória gráfica da humanidade, a arte rupestre está presente em cerca de 1200 rochas espalhadas por mais de 80 sítios ao longo do Vale do Côa. Apoiadas por um punhado de arqueólogos e milhares de estudantes que levaram a avante o slogan “As gravuras não sabem nadar!”, estas manifestações de arte que fizeram parar um país inteiro e levaram à suspensão da construção de uma barragem, hoje são Património Mundial e celebram 25 anos de luta pela sua preservação.
Por Ana Catarina Correia
Em 1991 foram encontrados os primeiros núcleos de arte rupestre. No entanto, só em 1994 é que estes achados se tornam públicos “por intermédio do arqueólogo Nelson Rebanda que chamou ao local alguns colegas e informou-os sobre a importância das descobertas”, esclarece José Ribeiro, professor e presidente do conselho diretivo da Escola Secundária de Vila Nova de Foz Côa em 1995. Em janeiro do mesmo ano, José Ribeiro levou a escola a tomar uma posição e a dar origem ao Movimento Internacional Para a Preservação das Gravuras Rupestres do Vale do Côa, admitindo que “inicialmente a esperança era pouca. Era a primeira vez na história das nações que uma obra enorme como uma barragem seria abandonada e preterida pela preservação do património”.
No seguimento do movimento que levou a avante o slogan “As gravuras não sabem nadar!”, inspirado numa música da banda Black Company, surgiram diversas atividades com o objetivo de dar a conhecer o valor das descobertas. Entre conferências, debates televisivos, deslocações à Assembleia da República, recolha de assinaturas em todas as escolas do país e muito mais, deu-se a conhecer a terra que viria a fazer parar a construção de uma barragem. “Foz Côa era uma terra desconhecida para a esmagadora maioria dos portugueses e, de repente, o património do Côa era notícia no New York Times”, diz Dalila Correia, arqueóloga do Museu do Côa, lembrando a luta na qual participou ativamente enquanto estudante do 12º ano.
Uma vitória para a Cultura
A 20 de fevereiro de 1995, os estudantes liceais recebem a visita do então Presidente da República, Mário Soares. “O Presidente foi recebido por nós, estudantes, a cantar em grande coro As gravuras não sabem nadar. A resposta dele próprio foi “E não sabem” e isso foi o reforço numa esperança que, no mês de outubro, com a vitória nas eleições legislativas pelo governo liderado pelo engenheiro António Guterres, se viu alcançada. Finalmente o Côa e a arte paleolítica estavam a salvo”, conta a arqueóloga que sentiu a arte rupestre mudar a sua forma de pensar e projetar o futuro.
Ainda que o pedido para o abandono da construção da barragem tivesse surgido em janeiro de 1995 por parte do Instituto Português do Património Arquitetónico e Arqueológico, a suspensão da obra apenas acontece em 1996, quando António Guterres vence as eleições legislativas. Considerando a opinião dos especialistas e arqueólogos acerca da importância artística e científica das rochas descobertas no Côa, e contrariando quem afirmava ser possível manter a barragem ao mesmo tempo que se salvavam as gravuras, o governo de Guterres, com Manuel Maria Carrilho no papel de ministro da Cultura, ordena o abandono da obra. No mesmo ano nasce o Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), que “tinha por função gerir, proteger, musealizar e organizar para visita pública os monumentos incluídos na sua zona especial de proteção, tornando-se no primeiro, e até ao momento único, parque arqueológico português”, como explica João Paulo Sousa, vereador da Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa.
No seguimento do que já havia sido conquistado pelo governo de António Guterres, chega, no dia 2 de dezembro de 1998, o reconhecimento da importância cultural das gravuras rupestres pelo Comité do Património Mundial da UNESCO que as integra na “lista de sítios classificados como património da humanidade num dos processos mais rápidos de classificação por parte daquela instituição”, refere ainda o vereador. Este reconhecimento surge como mais uma vitória para o estatuto da Arqueologia, do Património Cultural e da Arte que a UNESCO acabou a classificar como sendo “uma ilustração excecional do desenvolvimento repentino do génio criador, na alvorada do desenvolvimento cultural humano”.
Também no ano de 1998 surge a promessa de um museu que já era pensado desde a polémica de 1995, mas que apenas começaria a ser construído em 2007. Inicialmente projetado pelo primeiro diretor do Parque Arqueológico do Vale do Côa, o arquiteto Fernando Maia Pinto, para que se construísse no próprio rasgão feito pela barragem. Mais tarde, a obra passou para as mãos de Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, uma equipa de arquitetos da cidade do Porto.
O Museu do Côa
Aliado ao parque de 200 quilómetros quadrados que exibem o Vale do Côa, está o Museu do Côa que completa, a 30 de julho, uma década ao serviço da cultura e é candidato ao prémio de melhor museu do ano pela Associação Portuguesa de Museologia. O espaço sofreu entretanto uma atualização de conteúdos, reinventando-se e adaptando as pinturas rupestres ao século XXI, com o acrescento de realidade virtual e interações através de tablets. João Paulo Sousa admite que esta candidatura por parte do museu já causa impacto na região. “A candidatura ao prémio de melhor museu já está neste momento a possibilitar maior visibilidade, maior número de visitantes e consequentemente com o prémio ganho aumenta exponencialmente a vertente económico-turístico do concelho.” O vereador refere ainda que este poderá vir a ser “mais um contributo precioso para a (nossa) pretensão: Foz Côa, capital cultural do Interior”.
Cristina Rebelo exerce a função de guia desde 1997, inicialmente pelo PAVC e, atualmente, pela Fundação Côa Parque, criada em 2011 para gerir o Parque Arqueológico, o Museu, e para assegurar a salvaguarda, conservação, investigação, divulgação e valorização da arte rupestre do Vale do Côa. A guia acredita que “passados quase 24 anos desde a criação do PAVC, 10 anos após a inauguração do Museu e contando as mais de 725.000 pessoas que já visitaram o Côa, já existem argumentos mais que suficientes para se ter conquistado o coração da população” e encarar o museu como uma grande vitória tanto para os fozcoenses, como para a Cultura e para a Arqueologia.
O Museu do Côa, já com vários prémios arrecadados, foi pensado ao pormenor, desde a sua perfeita integração na paisagem até aos bancos do seu interior, que “foram concebidos para representar o relevo das montanhas onde a obra assenta celebrando o encontro dos dois patrimónios mundiais da região: a arte rupestre e a paisagem do Douro Vinhateiro”, como afirma Karina Soares, guia de arte rupestre desde 2009 pela DouroTotal, uma empresa parceira do Museu.
“Há três núcleos de arte rupestre abertos ao público. A Canada do Inferno, a Penascosa e a Ribeira de Piscos. E é aqui que está presente o verdadeiro museu, ao ar livre, e que nos leva a afirmar que o Museu do Côa não substitui, de todo, a visita aos núcleos. O Museu serve como complemento, como um portal que abre as portas do mundo da arte do paleolítico aos visitantes”.
Karina Soares, guia da DouroTotal
“A Arte Rupestre do Vale do Côa é o mistério que representa a essência da Humanidade e que em si encerra os enigmas de uma existência grandiosa pelo tempo esquecida, mas não apagada”. É assim que Ricardo Periquito descreve a arte do Côa. Formado em Artes Plásticas e com um percurso académico assente numa forte componente em História de Arte, na qual abordou a arte da qual é agora guia, Ricardo Periquito é, assim como Karina Soares, um dos parceiros do Museu do Côa, representando a empresa O Transmontano Errante. O guia vê na Arte do Côa “um ex-libris da região e de Portugal. Não apenas pelo impacto que esta descoberta teve a nível mundial, por ser o maior sítio com a maior colecção de Arte do Paleolítico Superior a céu aberto em todo o Mundo, mas também por tudo que ainda está por descobrir e estudar e por todo o impacto que continuará a ter durante gerações”.