“O design não é só uma resposta ao mundo, é uma disciplina que nos permite pensar”

A viseense Mariana Pestana será a próxima curadora da Bienal de Design de Istambul. A arquiteta, que viveu durante dez anos em Londres, é a primeira portuguesa comissária da Bienal. Desde 2012, a Bienal de Design de Istambul, que decorre a cada dois anos, explora a diversidade ideológica concernente ao design. Criada pela Istambul Foundation For Culture And Arts (IKSV), a Bienal desenvolve uma rede criativa nacional e internacional, em colaboração com artistas, instituições, entidades e universidades. A quinta edição da Bienal de Design de Istambul decorrerá entre 26 de setembro e 8 de novembro do vigente ano. Em entrevista, Mariana Pestana conta a sua experiência.

Entrevista por Carla Almeida, Inês Saúde e Simão Almeida

A arquiteta vê a pandemia como um desafio que a entusiasma

Quando é que nasceu o gosto pela arquitetura?

É difícil… [RISOS] As primeiras memórias que tenho da arquitetura ou de contacto com a profissão são de quando eu vivia em Viseu. O meu vizinho da frente tinha uma plotter (impressora de grandes dimensões) e eu achava bastante incrível ver as impressões a saírem. Era uma experiência muito tecnológica que me marcou. Depois penso que foi uma coisa que foi acontecendo, porque quando estava no Liceu comecei por ir para o campo das ciências e depois senti-me desconfortável e mudei para a área de artes. Quando tive de escolher um curso profissional pareceu-me que a arquitetura era um compromisso mais ou menos justo entre as duas coisas dentro dos meus interesses. Claro que depois a realidade é muito diferente e hoje, embora tenha estudado arquitetura acho que sou arquiteta no sentido em que acho que a minha prática é arquitetónica, mas não é uma prática de construir edifícios. O design não é só uma resposta ao mundo, não se limita só a produzir novas coisas, é uma disciplina que nos permite pensar sobre o mundo. É uma disciplina que nos pode permitir refletir sobre as grandes questões do nosso tempo, como as alterações climáticas, os avanços tecnológicos.

Foi escolhida como curadora para a Bienal de Design de Istambul, que decorre em setembro deste ano. O que é uma Bienal e o que faz um curador?

Uma Bienal é um evento cultural que acontece de dois em dois anos. Há Bienais de arte, de design ou de arquitetura. No fundo a Bienal é uma grande mostra de trabalhos ao público, de uma determinada área. Muitas vezes, as Bienais acabam por ser um espaço de reflexão sobre uma produção de trabalho como aconteceu nos dois últimos anos, são sempre de pensamento contemporâneo. Há vários tipos de bienais, a Bienal de design de Istambul é uma Bienal que começou há 10 anos, esta é a quinta edição e que tem uma tradição de ser uma Bienal de pensamento critico, ou seja, o design é usado para posicionado enquanto uma disciplina de reflexão sobre o mundo. O termo curador tem a ver com uma ideia de cuidar, na sua origem está ligado à profissão que normalmente existe em museus de conservadores, uma pessoa que cuida da coleção de um museu ou de um espólio de uma coleção.

Como surgiu a oportunidade de ir para Istambul? Na sua opinião, foi o seu trabalho no estrangeiro que influenciou a escolha dos júris?

A bienal de Istambul tem um advisor reporter, um grupo de pessoas que decide o curador da próxima edição. Eu fui nomeada por esse grupo para ser a curadora desta edição, foi uma surpresa para mim. Quando recebi o telefonema, depois de me informarem que eu estava a ser considerada para essa função, tivemos uma conversa para assegurar que estávamos alinhados e depois comecei a trabalhar. Quanto à escolha dos júris é possível, até pelo facto de o meu trabalho se ter cruzado com alguns dos membros e eles terem tido oportunidade de ver o que eu fiz. Alguns trabalhos foram em Lisboa, eu participei na Trienal de Arquitetura de Lisboa, em 2013. O facto de ter trabalhado em diferentes lugares pode ter aumentado a probabilidade de eles verem o meu trabalho.

Qual a sensação de ser a primeira portuguesa a ocupar o cargo em Istambul?

Sobre ser a primeira portuguesa, não sei bem o que dizer sobre isso, até porque esta bienal é a 5a edição, houve só quatro curadores anteriores e todos eles eram de diferentes nacionalidades. Quase todos tinham nacionalidades não turcas.

Está a ser possível trabalhar a distância?

Fazer a bienal neste momento é um enorme desafio. Antes já era um desafio para mim, porque nunca tinha trabalhado à escala de uma bienal que é um programa mais extenso, mas com esta conjuntura da pandemia tornou-se mais difícil, mas também mais entusiasmante. Antes do isolamento social e destas medidas de confinamento eu já tinha feito algumas viagens a Istambul e adiantado muito trabalho ao visitar alguns estúdios e estar em contacto com a equipa, mas o meu trabalho iria sempre ser feito numa grande distância. Quando tudo isto aconteceu eu estava em Istambul e tive de voltar sem contar, portanto, não consegui concluir todas as coisas que queria fazer no terreno. É um desafio, torna tudo um pouco mais difícil, mas acho que vamos conseguir dar resposta. Claro que vai ser uma bienal diferente, penso que tudo isto acaba por ser um desafio e uma oportunidade ao mesmo tempo. As Bienais enquanto modelo têm alguns problemas, por exemplo, em termos ambientais não é muito sustentável fazer centenas de pessoas viajarem para uma cidade ao mesmo tempo ou transportar peças de um país ou continente para outro… Tudo isso são modelos que já estão muito estabelecidos, mas que se calhar também é importante questionar. Esta vai ser nesse sentido, é uma bienal que não pode funcionar como as outras funcionaram até agora e, por isso, obriga-nos a reimaginar o modelo, acho que isso acaba por ser diferente. O que me parece importante é fazer uma Bienal mais vocacionada para as comunidades locais, uma bienal que apoia trabalho de designers e arquitetos que estão a fazer trabalho importante na área temática que nos interessa ao apoiá-los e apoiar não é só mostrar o trabalho, às vezes é mais importante apoiar de outras formas, é nisso que estamos a pensar. Temos de pensar na Bienal como uma estrutura de suporte à prática do design, artística e da arquitetura. É esse o desafio que temos em mãos e que nos entusiasma.

Porque decidiu emigrar e afirmar-se no estrangeiro? Sentiu dificuldades com a adaptação?

Quando fui para o estrangeiro tinha acabado de tirar o curso de arquitetura e havia um interesse em arquitetura e narrativa e ficção. Na altura fui à procura de um lugar onde pudesse explorar mais isso. Eu trabalhei [em Portugal] em arquitetura com o Rui Mendes, que é um arquiteto que eu gosto imenso, e com o Pedro Gadanho. Quando trabalhei com o Pedro Gadanho fiz uma exposição e nessa altura interessou-me muito pensar na exposição como uma sequência narrativa e que essa narrativa era construída num espaço, ao contrário de um livro em que a narrativa é feita numa sequência de páginas. No contexto de uma exposição é tridimensional e, portanto, interessava-me muito explorar mais isso. Na altura encontrei um curso de mestrado na Central Saint Martin [Universidade das Artes de Londres] de ambientes narrativos e foi à procura desse meu interesse que eu fui para Inglaterra. Depois tive muita sorte, tive uma bolsa de estudo que me permitiu completar o mestrado no estrangeiro e fui ficando, porque também no contexto desse mestrado conheci os meus colegas com os quais contruí este coletivo dos The Decorators. Até há um ano quando regressei.

Porque decidiu voltar a Portugal?

Eu regressei, por ter vontade de, por um lado, estar próxima da minha família, por outro por querer ter um estilo de vida mais calmo, sem tanta correria no dia a dia. Eu sentia que por vezes não tinha tempo para parar e pensar. Fez todo o sentido para mim regressar ao fim deste tempo. Não foi uma coisa planeada, eu não voltei com um objetivo muito claro, foi mais espontâneo, eu senti que era o que eu devia fazer.

Qual o prisma profissional entre as oportunidades no estrangeiro e em Portugal?

Acho que é muito diferente, por exemplo, em termos das indústrias culturais. Há cidades e países onde as oportunidades são maiores, porque a indústria é muito mais ativa, há muito mais produção, há muita rotatividade e criação de emprego na área dos museus e centros de arte porque há muitos também. Portugal comparado com Inglaterra, tem menos oportunidades de trabalho. Penso que há talvez menos transparência, pelo menos de uma forma imediata, em termos dessas oportunidades. Em Inglaterra, todos os trabalhos e oportunidades de emprego estão listadas no mesmo sítio que é acessível, aqui não é tão óbvio onde é que essas oportunidades estão e onde nos podemos ter conhecimento delas. Temos uma cultura onde, às vezes, privilegiamos mais o conhecimento pessoal, não estou a falar de “favores”, não é nesse sentido, mas tem a ver com uma certa forma de abordar as profissões e os empregos que no norte da Europa, mais racional, acaba por a seleção ser um pouco mais objetiva. No geral acho que Portugal é um país com uma escala mais pequena e uma produção cultural menor, que não gere a mesma quantidade de oportunidades.

Para terminar, um dos projetos com o qual trabalha é o The Decorators. Tem outros planos e projetos em mente para o futuro?

Eu estou muito dedicada para entregar a Bienal até ao final de 2020, mas tenho outros projetos em curso. Um deles é uma exposição que estou a desenvolver com os The Decorators, que vai ter lugar na Galeria Standley Picker [em Kingston, no Reino Unido] e que reflete sobre a relação entre design e alimentação. Parte da ideia sobre futuros possíveis de alimentação mais ecológicos, mais higiénicos e ritualísticos. Tem a ver com uma investigação que estamos a desenvolver e que vem no seguimento de um trabalho que fizemos com os The Decorators, na relação entre espaço, público, colaboração, comunidade e alimentação, que, muitas vezes, é o veículo que potencia o convívio.

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