A Internet não vai acabar
Foi no dia 12 de setembro de 2017 que o Parlamento Europeu aprovou uma proposta que tem como objetivo melhorar a regulação dos direitos de autor no mercado digital dentro da União Europeia, mas que ainda será alvo de avaliação durante o mês de janeiro, podendo sofrer algumas alterações. Neste documento, o Artigo 11 e 13 estão no epicentro desta polémica, com destaque para o Artigo 13 que gerou imensas perguntas e indignações por parte de utilizadores da plataforma Youtube.
A diretiva foi aprovada em plenário por 438 votos a favor, 226 contra e 39 abstenções em que estiveram presentes eurodeputados portugueses do PSD, PS (exceto Francisco Assis), CDS e MPT que votaram a favor. Enquanto PCP e BE votaram contra.
Nos últimos dias a campanha #SaveYourInternet, contra estas alterações, ganhou uma nova força com grandes YouTubers nacionais a declararem o “fim da Internet”, expondo vídeos com os seguintes títulos: “O FIM DO YOUTUBE …. Artigo 13”; “O meu canal vai ser apagado”; “VOU FICAR SEM O MEU CANAL!”; ou “O FIM DA INTERNET ! – ARTIGO 13”.
Estes são alguns dos títulos de vídeos publicados no Youtube que começaram a surgir nos últimos meses em Portugal após o envio de um e-mail da plataforma para alguns dos youtubers mais influentes do país. No e-mail pode ler-se:
“Imagine uma Internet na qual os seus vídeos já não podem ser vistos. Imagine uma Internet sem os seus criadores favoritos. Imagine uma Internet na qual novos artistas nunca são descobertos. Isso pode acontecer na Europa. O Artigo 13 faz parte de uma nova diretiva da União Europeia sobre os direitos de autor criada com o objetivo de proteger melhor a criatividade e de encontrar formas eficazes de os detentores dos direitos de autor protegerem o respetivo conteúdo online. Para que fique claro, nós apoiamos os objetivos do Artigo 13. No entanto, a atual proposta do Artigo 13 do Parlamento Europeu irá criar consequências não intencionais significativas. Ameaça impedir milhões de pessoas na Europa de carregar conteúdos em plataformas como o YouTube. Os visitantes europeus perderiam acesso a milhares de milhões de vídeos em todo o mundo. Há uma solução melhor. Saiba mais e faça-se ouvir em youtube.com/SaveYourInternet”.
Desta forma a Internet virou o caos, com os sucessivos alarmes de youtubers acerca deste tema, levando a relatos de pais que tiveram que acalmar os seus filhos porque estes achavam que a Internet ia acabar e que os canais dos seus ídolos iam ser apagados.
Sofia Colares Alves, representante portuguesa na Comissão Europeia reagiu e rapidamente respondeu aos YouTubers com diversas abordagens, “O artigo 13o não vai acabar com a Internet. Pelo contrário, vai dar-vos força enquanto criadores de conteúdos. Com o artigo 13o, vão poder dizer ao YouTube como querem que os vossos vídeos sejam utilizados”, explica.
A responsável tranquiliza ainda os utilizadores acerca dos memes: “os memes não vão desaparecer. E ainda bem! Aliás, os memes são protegidos por uma exceção na Diretiva de Direitos de Autor de 2001. Têm sido protegidos pela União Europeia durante os últimos 17 anos e não há ninguém que queira acabar com eles”
É preciso então perceber o que é isto do Artigo 13. Mas antes temos que ter em conta também o artigo 11 que diz o seguinte “o Artigo 11o irá definir que as plataformas da Internet que armazenam e facultam ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido carregados pelos seus utilizadores devem ter acordos com os autores dos mesmos sobre a utilização de tais conteúdos ou outro tipo de material protegido.”
Resumindo, se um criador de conteúdo web partilha links de outros criadores e com essa partilha vai ganhar dinheiro, então o primeiro vai ter que repartir os seus ganhos com o segundo. Aqui incluem-se os agregadores de notícias, como o Google Notícias, por exemplo.
O artigo 11 foi criado a pensar nos grupos de media. Plataformas como o Google deixam de poder partilhar links para notícias sem autorização ou sem compensar os autores (jornais, rádios, televisões). No entanto, isto não afeta utilizadores singulares. Também não existe qualquer “taxa de links”, ou seja, não será preciso pagar para partilhar um artigo nas redes sociais.
Mas afinal o que é o Artigo 13?
A lei dos direitos de autor não é atualizada desde 2001. Após 15 anos a União Europeia apercebeu- se que a internet não está organizada e surge então o artigo 13 para evitar pirataria e refletir no digital aquilo que já acontecia nas televisões e nas rádios que supostamente pagam por cada vez que usam material protegido.
Até aos dias de uso o Youtube não era legalmente responsável por nenhum dos conteúdos da plataforma, o responsável era o utilizador. A partir do Artigo 13 o que se quer é inverter esta lógica, ou seja a União Europeia quer que o Youtube identifique proactivamente os conteúdos com direitos de autor e exerça a vontade do autor em relação aos ditos.
Segundo Rita Magalhães, assessora de imprensa do PCP, “o artigo 13 faz parte de um documento legislativo mais amplo denominado Directiva dos Direitos de Autor no Mercado Único Digital. Essencialmente ele surge com a justificação de assegurar uma remuneração justa para os autores, intérpretes ou executantes pela exploração das suas obras ou outro material protegido, incluindo a exploração em linha a ser garantida pelos prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e permitem o acesso a grandes quantidades de obras e outro material protegido por direitos de autor carregados pelos seus utilizadores.”
Se o autor não quer que usem os seus conteúdos o Youtube é obrigado a remover. Se o autor quer ganhar dinheiro com isso o Youtube então operacionaliza a rentabilização.
Se o autor não se importar que se use o seu conteúdo então é ativado o Content ID, que é uma ferramenta que deteta trechos de música ou vídeos com direitos, no entanto não é tão boa com imagens porque o pixel é complicado, ou seja, quando um músico tem por exemplo a sua biblioteca de músicas registada e licenciada no Content ID do Youtube, cada vez que alguém usa a sua música a ferramenta deteta, diz ao artista e o artista pode escolher uma de três opções: monitorizar, rentabilizar (ou seja, ficar com uma parte das receitas publicitárias desse vídeo) ou remover.
Segundo Miguel Sabino CEO da empresa THUMBMEDIA, networker portuguesa, “o Content ID não é um filtro, é uma tecnologia que compara o conteúdo que é colocado no Youtube com uma base de dados de conteúdo protegido já existente, ou seja, os titulares de direitos já entregaram ao Youtube as obras que devem ser protegidas na plataforma”.
Nos últimos 12 meses o Youtube cerca de 800 milhões de euros a detentores de direitos. O Artigo 13 vem contradizer isto, querendo que a partir de agora não seja feito de forma voluntária mas sim uma obrigação legal, licenciando o material protegido, bem como remunerá-lo de forma justa e transparente.
No entanto, é difícil para a plataforma tratar disto visto que não tem como saber o que está protegido ou não, precisando da colaboração dos titulares de direitos para saber o que é deles e poder fazer funcionar o Content ID. Neste aspeto a diretiva vem afirmar que a partir de agora o Youtube é que passa a ser o responsável pelo ato de comunicação e não os usuários.
Carlos Rodrigues, iniciou o seu canal no Youtube em novembro de 2014, mostra-se insatisfeito face às perspetivas do Artigo 13 e diz que em nada vem beneficiar os criadores de conteúdo, “a internet é um espaço livre e na maior parte do mundo existe a liberdade de expressão, e este artigo iria retirar essa liberdade. Na forma como esta escrito não existe maneira de ser viável para nós criadores de conteúdos e para todos os utilizadores da internet e das redes sociais pois estas não existiriam.”
Esta proposta apenas se trata a nível europeu. A diretiva não é mundial, é apenas geográfica não afetando as plataformas de outros países fora do continente europeu. Como tal, os europeus vão perder acesso a milhares de vídeos, pois os utilizadores de outros países poderão continuar a fazer todo o tipo de conteúdo só que não vai estar disponível na União europeia.
Em discussão estão três versões da diretiva: a da Comissão Europeia, a do Parlamento Europeu e a do Conselho Europeu. Ainda estão a analisar qual das três vai prevalecer, mas crê-se que seja uma combinação de um pouco de cada.
A responsabilização de conteúdos
Neste domínio apresenta-se uma questão bastante importante que está a gerar outra discussão. Se houver um vídeo com conteúdo protegido por direitos de autor o Youtube é quem fica responsável por aquilo.
No entanto, é impossível que a plataforma licencie proactivamente todas as horas de conteúdo do mundo geradas a cada segundo e por isso o Youtube quer um modelo de coresponsabilidade, isto é, o Youtube só assume a responsabilidade a partir do momento que determinado conteúdo tenha um dono, sendo o autor a assumir a outra parte da responsabilidade notificando o Youtube e dizendo que o conteúdo lhe pertence e se quer remover, rentabilizar ou monitorizar.
Como já dissemos anteriormente, há várias versões acerca deste documento. Umas simpatizam mais com este modelo de coresponsabilidade, mas há outras que se inclinam mais para a responsabilização total da plataforma.
Mas se a plataforma assumir toda a responsabilidade algo pode correr mal visto que o Youtube não pode arriscar que se publique uma imagem sem saber se tem direitos e portanto irá bloquear a priori aquilo que não conseguir identificar. Neste caso faz sentido falar-se de filtros e censura.
De acordo com Miguel Sabino, esta diretiva quer garantir que todo o conteúdo que está nas plataformas está devidamente licenciado mas para isso obriga a que essas mesmas plataformas criem filtros ou mecanismos que atuem antes do conteúdo chegar ao público, evitando assim a violação de direitos de autor.
“Mas o problema está exatamente na criação destes mecanismos, pois estes filtros são caros de desenvolver, são tecnologias que ainda nem sequer existem e muitas delas ainda nem se percebeu muito bem como é que podem ser operacionalizadas e o que as plataformas tem tendência a fazer é enquanto eu não tiver uma tecnologia, que não sei se vou ter dentro de um, cinco ou 10 anos, vai ser salvaguardar a minha posição legal pois não quero ser processado por quem legitimamente acha que o seu direito está a ser infringido. Portanto só entra o conteúdo que eu tiver 100% que não infringe os direitos de ninguém” afirma o CEO da networker portuguesa.
Esta exigência de tecnologias de reconhecimento de conteúdos é uma das maiores preocupações. A União Europeia quer utilizar estas tecnologias de forma a que elas apliquem normas de direito de autor, que muitas das vezes são normas complexas e que exigem juízos inerentemente humanos, aplicando ás tais exceções em que o direito de autor permite os usuários façam paródias, citações, ilustrações com fins de ensino e investigação.
O caso da paródia, que em Portugal está protegida ao abrigo da liberdade de expressão. A Comissão diz convictamente que se podem continuar a fazer livremente mas espera que seja o Youtube o responsável por distinguir o que é paródia ou não, pedem que haja “ferramentas de apreciação célere” no caso de bloqueios de vídeos a priori.
É muito difícil para uma tecnologia perceber que tipo de utilização está a ser feita pois a mesma não deteta o contexto, no máximo consegue detetar a utilização de uma obra protegida de outra pessoa mas não percebe em que contexto está a ser utilizada. É importante haver esta perceção do contexto para que se consiga distinguir o lícito do ilícito.
Outro problema associado a esta questão da paródia é que este género vive muitas vezes da atualidade e do tempo de reação. A paródia deixa de ser uma verdadeira paródia, deixa de ter associado um conteúdo humorístico se já vier tarde.
A partir do momento que se exige ou estimule uma tecnologia a remover um conteúdo e depois dou a possibilidade ao utilizador de reclamar, muitas vezes a decisão sobre essa reclamação pode já vir tarde, a paródia pode não chegar a ser carregada porque já perdeu a atualidade.
Já em relação a logotipos de marcas, nada muda nesse sentido e esse tema nem sequer está em discussão “a diretiva não tem qualquer relação com o direito das marcas que é propriedade industrial e não direito de autor. Regra geral, nada impede utilizações de marcas”, refere Sofia Colares Alves.
Tito Rendas, especialista em direito de autor, afirma que esta proposta refere-se aos direitos de autor e não ao direito de marcas o que significa que em princípio os youtubers poderão continuar a fazer os seus vídeos exibindo marcas de roupa.
Segundo Eduardo Santos, presidente da Associação D3 da defesa dos direitos digitais, a D3 anda há dois anos a falar deste assunto juntamente com muitos académicos, muitas organizações de defesa de direitos digitais, de software livre a lutar pelos tais direitos digitais mas afirma que, pelo menos em Portugal, “bastou alguns youtubers fazerem vídeos sobre o assunto para finalmente ele chegar aos telejornais e aos milhões de visualizações. Portanto eu penso que é essencial que se continue a falar acerca deste assunto porque a única oportunidade que temos de mudar este artigo é tornar um mote relevante para as eleições de 2019 e dizer aos políticos que nos importamos e que este é um assunto chave e que as decisões que vamos fazer até a nível de eleições vão ter em conta este assunto que nos diz tanto”.
Divulgação da informação
No que toca à divulgação da informação é importante realçar a pouca importância que os media tradicionais deram ao Artigo 13. Questionada da existência de interesses por manter determinadas partes do artigo ocultas, Rita Magalhães responde “Não há partes do artigo não divulgadas. As diversas formulações e alterações ao referido Artigo são públicas.”
Fala ainda da dificuldade de acesso à informação, “os sítios das instituições da UE tendem a ser quase impenetráveis para a população, que não está familiarizada com os processos de discussão. Outra questão é o tratamento dado ao assunto pela Comunicação Social, sendo que a larga maioria dos órgãos de comunicação social estão na posse de grandes grupos económicos e do capital financeiro, é legítimo inferir uma relação entre os interesses que servem os detentores dos ditos “media tradicionais” e as grandes produtoras e plataformas de divulgação de conteúdos.”
Já o youtuber Carlos Rodrigues diz que o primeiro contacto que teve com o artigo 13 foi numa notícia num site sobre tecnologia que segue regularmente e que estava pouco explicativo, “uns dias depois recebi um e-mail do Youtube, como todos os youtubers receberam, a falar sobre aquilo que o artigo 13 era e para tentar informar o máximo de pessoas possível acerca do artigo 13 e como podíamos ter uma voz, tentando pôr abaixo este artigo e o artigo 11 consequentemente.”
No dia 12 de dezembro, entre as 16h e as 20h, foi feita uma ação coletiva para a comunidade digital se manifestar acerca do Artigo 13 com objetivo de chegar à ministra da cultura, aos eurodeputados que poderão ter um voto nesta matéria.
Reportagem: Joanne Batista
Imagens: DR