“É muito mais do que futebol”
O futebol feminino tem vindo cada vez mais a conquistar o seu espaço, enfrentando um percurso marcado por desafios, como a falta de infraestruturas e a desigualdade no apoio em relação aos escalões masculinos. Num país apaixonado pelo futebol, como Portugal, onde, segundo um estudo feito pela UEFA em 2023, 74% da população se assume adepta da modalidade, esta paixão continua a ser maioritariamente reservada ao futebol masculino. Que passos devem ser dados para quebrar estas e outras barreiras e como é que se pode promover melhores condições para as jogadoras do nosso país, cujo número cresce a cada dia?
Reportagem de Francisca Bernardes
Portugal é o 4.º país do mundo mais envelhecido e, segundo o Eurobarómetro em 2023, 73% da população portuguesa admite não praticar qualquer desporto ou atividade física semanalmente. Apesar deste cenário, existem histórias que desafiam esta tendência nacional, como a de Inês Reis, uma jovem de 20 anos, natural de Santa Maria da Feira, que encontrou no futebol a sua paixão.
Inês Reis iniciou a sua jornada aos 10 anos, na Associação Desportiva Sanjoanense, integrando uma equipa mista. Ainda assim, para a atelta, o verdadeiro início da sua carreira desportiva aconteceu aos 13 anos, quando participou num treino de captação do Fiães Sport Clube e integrou uma equipa exclusivamente feminina. Mesmo sendo a mais nova entre jogadoras com mais de 20 anos, destacou-se e conquistou a titularidade em praticamente todos os jogos. “O bichinho do futebol que tinha desde pequena só continuou a aumentar”, recorda.
Após uma época no Fiães, em 2018, seguiu para o Boavista Futebol Clube, onde permaneceu por seis anos. Em 2024, a atleta decidiu abraçar um novo desafio e dar continuidade à sua carreira no Leixões Sport Clube, onde permanece até hoje.

A entrada da jovem no futebol foi adiada pelos pais, que hesitavam devido à pouca informação disponível sobre a modalidade e ao reduzido número de equipas e escalões femininos. Esse obstáculo foi um dos primeiros grandes desafios da jovem jogadora: querer jogar futebol, mas não ter onde o fazer. “Os meus pais, mesmo não querendo que eu fosse para o futebol, sabiam que eu tinha o bichinho e sempre me apoiaram, tanto eles como toda a minha família e amigos”, reforça Inês Reis.
400 mil praticantes até 2030
Arménio Pinho, de 65 anos, um dos oito diretores da Federação Portuguesa de Futebol, revela com confiança que o plano estratégico em desenvolvimento poderá transformar a modalidade nos próximos anos. “Estamos convencidos de que, até 2030, alcançaremos 400 mil praticantes, dos quais 75 mil serão mulheres”, afirma. O plano abrange futebol, futsal e futebol de praia, com metas como: 50 mil jogadoras para futebol e 25 mil para futsal. “Atualmente, fechamos esta época com 250 mil atletas, incluindo 21 mil mulheres. Nos próximos cinco anos, isto tem de andar para a frente”, sublinha Arménio Pinho, reforçando a urgência de ações concretas para atingir os objetivos.

Há uma evolução que reflete os esforços que têm sido feitos para tornar o futebol feminino mais inclusivo e acessível. Contudo, Inês Reis acredita que ainda há por onde melhorar, sendo essencial a inserção de mais escalões no futebol. “Quando eu comecei a jogar, com 13 anos, tive de entrar para um escalão sub-19, porque não tinha mais nenhuma equipa para jogar”, conta.
Atualmente, já é possível encontrar com maior facilidade, mais equipas e escalões, o que torna o processo para todas as raparigas que querem começar a jogar muito mais fácil.
Disparidade de condições
Apesar da crescente vontade de aproximar o futebol masculino e feminino, Inês Reis acredita que equiparar ambos na totalidade não é realista. “A intensidade e fisionomia são diferentes, e o futebol masculino tem um passado que cresce todos os dias e o acompanha há anos”, explica. Esta diferença histórica traduz-se numa visibilidade distinta, o que, na opinião da atleta, justifica as discrepâncias salariais entre o feminino e o masculino. “Os dois geram receitas completamente diferentes. Se o masculino gera mais, é normal que receba mais”.
Ainda assim, a jogadora reconhece que “o futebol feminino está a ganhar o seu espaço”, mas confessa sentir que “há pessoas que ainda o desvalorizam”.
Arménio Pinho partilha a visão da jogadora, referindo a sustentabilidade como um dos maiores desafios do futebol feminino. “Na Federação, tudo é sustentável devido aos desempenhos da seleção A masculina. É isso que nos traz patrocínios que permitem que tudo o resto funcione. É algo frio de se admitir, mas é a verdade”, reconhece.
Ambos destacam que a falta de infraestruturas revela ser um dos maiores entraves no crescimento da modalidade. O diretor reforça esta ideia, acrescentando que “para existirem mais praticantes femininas, é necessário existirem campos e pavilhões disponíveis para as receber”.
Inês Reis fala ainda sobre a sua experiência pessoal em relação à falta de condições para o futebol feminino. “Se tiverem de dar alguma coisa a alguém, priorizam sempre o masculino. Já cheguei a ter jogos do outro lado do país e nós, equipa sénior feminina, íamos com um autocarro alugado, enquanto os sub-7, com jogos a 20 minutos do Boavista, levavam o autocarro do clube”, exemplifica, apontando a tal disparidade nas condições recebidas.
A atleta acrescenta ainda que, no Boavista, deixou de haver campos disponíveis para o feminino treinar e, por isso, a equipa viu-se obrigada a treinar nos arredores do clube. “Houve muitos jogos anulados para disponibilizar o campo para a equipa masculina, e a nossa equipa teve de jogar noutros campos, perdendo a vantagem de jogar em casa”.
Esta “desvalorização” é ainda mais evidente nos horários de treino, o que contribui para o descontentamento. A jogadora conta que, em todos os clubes que já jogou, a equipa feminina sempre treinou no último horário possível, sendo, no seu caso atual, às 21h30.
Relativamente aos horários de treino tardios, Arménio Pinho considera que é inconcebível que as raparigas treinem tão tarde. O diretor ilustra o problema com um exemplo concreto: “Uma jogadora de Ovar que apanha um comboio até Famalicão, onde uma carrinha a vai buscar para treinar em Braga, no final do treino, à noite, tem de repetir todo o percurso de volta. Nós precisamos de ter mais clubes e mais infraestruturas”.
“É preciso mais“
No ano de 2024, a Federação destinou 10,8 milhões de euros para apoiar 414 clubes a nível nacional com infraestruturas. No entanto, Arménio Pinho refuta que, apesar de ser um valor significativo, ainda está longe de ser suficiente. “É preciso mais”, afirma.
No clube atual de Inês Reis, as infraestruturas são mais favoráveis, com um balneário exclusivo para a equipa feminina, sempre disponível, assim como campos para treinos e jogos. Contudo, a jogadora revela que os horários continuam a ser tardios. Inês explica que isto também se deve ao facto de muitas atletas trabalharem, o que torna impossível realizar os treinos mais cedo.
Apesar dos obstáculos enfrentados ao longo do seu percurso, tornar-se jogadora profissional é um sonho que a atleta não descarta. Ainda assim, reconhece que, neste momento, também existam outras prioridades na sua vida. “Desde que entrei para o futebol, é um sonho para mim. Agora, é mais complicado. Nenhuma jogadora consegue viver apenas do futebol. Se um homem estivesse na posição em que eu estou, provavelmente já estaria a ganhar um bom salário, mas connosco isso não acontece”, revela Inês Reis.
Para a feirense, os estudos e a sua carreira exterior ao desporto são agora o foco principal. “Quero terminar o curso, fazer um mestrado e arranjar trabalho. Faz parte. Não posso estar no futebol para sempre”.

Com 15 anos de dedicação ao futebol, Inês Reis mantém praticamente sempre a mesma rotina desde o seu início. Embora saiba que, um dia, poderá ter de abandonar o desporto que tanto ama, esse momento ainda não faz parte dos seus planos. Para já, o foco é continuar a aproveitar cada momento dentro das quatro linhas.
“Muito mais do que futebol”
Arménio Pinho destaca ainda o impacto que conquistas recentes têm tido na visibilidade do futebol feminino: “O impacto da seleção para o Mundial foi uma conquista muito especial para todos nós. Já estamos no Europeu e isto traz muita visibilidade para todas as meninas que estão no futebol, o que acaba por atrair ainda mais jogadoras.”
Tanto a atleta como o diretor concordam que o futuro da modalidade depende de um esforço contínuo e inclusivo. Arménio Pinhp destaca que “se queremos mais mulheres no futebol feminino, temos de ter mais mulheres como jogadoras, treinadoras, dirigentes, árbitras, staff para os balneários, presidentes… porque senão as coisas não funcionam.” Inês Reis reforça a importância do lado humano, aconselhando todas as meninas que querem começar a jogar a “terem paciência e arriscar”, num desporto que promete proporcionar muitas amizades e aprendizagens, e que, segundo a jogadora, “é muito mais do que futebol”.